A defesa da Lei Básica e do princípio “um país, dois sistemas” é dever de todos

por Arsenio Reis

I – A Lei Básica da RAEM estabelece, em várias disposições suas, o dever de todos os titulares do poder político respeitarem, cumprirem e defenderem a Lei Básica. Assim: logo no momento da tomada de posse, o seu artigo 101.º determina o dever de “o Chefe do Executivo, os titulares dos principais cargos públicos, os membros do Conselho Executivo, os deputados à Assembleia Legislativa, os magistrados judiciais e os magistrados do Ministério Público (…) defender a Lei Básica (…)”; na alínea 2), do seu artigo 50.º, prescreve o dever de o Chefe do Executivo “fazer cumprir” a Lei Básica; na alínea 1) do seu artigo 71.º, determina o dever de os Deputados da Assembleia legislativa, ao elaborarem, alterarem, suspenderem ou revogarem leis, o fazerem “nos termos” da Lei Básica. 

Também a legislação complementar da “Mini-constituição” da RAEM prescreve o dever dos Deputados “Observar rigorosamente e defender a Lei Básica”, como resulta da alínea 4) do artigo 38.º do Regime da Legislatura e do Estatuto dos Deputados à Assembleia Legislativa (Lei 3/2000); e, por último, a validade das leis, dos regulamentos administrativos independentes, e dos regulamentos administrativos complementares e demais actos normativos internos da RAEM, depende da sua “conformidade com a Lei Básica”, tal como decorre do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 13/2009.

II – Mas, não foi só a Assembleia Popular Nacional que, ao aprovar a Lei Básica, teve a preocupação de garantir o seu respeito, cumprimento e defesa por todos os titulares de cargos políticos e públicos. As Autoridades Centrais da República Popular da China, a começar pelo seu Presidente, também têm repetida e constamente afirmado a necessidade de divulgar e defender a Lei Básica, seja nas reuniões magnas da Assembleia Popular Nacional, seja quando os governantes da RAEM se deslocam, anualmente, a Pequim para prestar contas do trabalho desenvolvido e a desenvolver, quer em outras ocasiões não tão solenes. 

Assim, por exemplo, na sequência da “Implementação plena do espírito das «Duas Reuniões»: Nova jornada do desenvolvimento de Macau”, o director do Gabinete de Ligação do Governo Popular Central na RAEM, Zheng Xiaosong, apresentou quatro desejos durante a sessão: a implementação plena do princípio «um país, dois sistemas» e o cumprimento rigoroso da Constituição e da Lei Básica de Macau” (Fonte: GCS, 2018-03-26). 

Para tal, os titulares dos principais cargos e o Procurador-Geral da RAEM, foram mesmo convocados para se dirigirem a Pequim, em Abril do corrente ano, para aí, receberem a necessária formação. Na reunião, que Han Zheng, membro do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista da China e vice-primeiro-ministro, teve com os formandos, disse “esperar que a equipa governamental da RAEM implemente o importante espírito mencionado nas instruções do Secretário-geral, Xi Jinping, sobre o papel de Macau, e a execução do princípio de «um país, dois sistemas» e a Lei Básica, na defesa firme da soberania, segurança e dos interesses do desenvolvimento do País”. Para o vice-primeiro-ministro “a equipa governamental deve defender sempre a população parte central e trabalhar em prol do seu benefício”. 

A Secretária Sónia Chan, de entre as quatro exigências, no sentido de elevar a capacidade de gestão da equipa e de promover o desenvolvimento de Macau, referiu, então, à comunicação social, as duas seguintes: a primeira, no sentido de que “os dirigentes devem executar, integralmente, a Lei Básica e o princípio «um país, dois sistemas»”; a segunda, referindo-se à “necessidade de defender a unidade e a soberania do País, bem como os interesses de desenvolvimento e a segurança nacionais” (GCS, 2018-04-24, Fonte: Gabinete do Porta-voz do Governo). Vê-se, pois, a especial relevância que tem sido dada ao integral e rigoroso cumprimento e defesa da Lei Básica, quer pela Assembleia Popular Nacional, quer pelas Autoridades Centrais, quer pela própria equipa governamental da RAEM (pelo menos, nas suas declarações).

III – Se, todavia, deitarmos uma olhadela pela actividade política e legislativa, levadas a cabo, quer pelos Secretários do Executivo, quer pelos Deputados da Assembleia Legislativa (e da sua Mesa), rapidamente constatamos que, em vez do “cumprimento rigoroso da Constituição e da Lei Básica de Macau” (Zheng Xiaosong), da execução do princípio de «um país, dois sistemas» e da Lei Básica (Han Zheng), que, em vez de os dirigentes executarem, integralmente, a Lei Básica e o princípio «um país, dois sistemas (Sónia Chan), em vez de “defender[em] a Lei Básica”, que todos juraram, no momento da tomada de posse, tal nem sempre tem ocorrido: ou porque os Secretários não têm sabido transmitir, devidamente, a formação recebida, aos dirigentes dos respectivos serviços públicos, ou porque, os Secretários, eles próprios, não consciencializaram a importância da não violação da Lei Básica. 

Como exemplo, pode apontar-se o princípio da igualdade (na sua vertente negativa, de probição de discriminação), consagrado no artigo 25.º da Lei Básica: recordem-se os casos da tentativa de fazer com que os trabalhadores não residentes pagassem mais caro o transporte público, relativamente aos residentes, ou que as mulheres, trabalhadoras não residentes, pagassem, de modo desproporcionado, os custos do parto, relativamente às residentes, ou, mais recente, que os estudantes homossexuais devessem ser objecto de medidas de excepção e correcção. 

E essa violação da Lei Básica não tem vindo só do lado dos Secretários e dos seus serviços públicos, mas também do lado dos próprios Deputados da Assembleia Legislativa, como sucedeu com o n.º 2 do artigo 37.º da Lei n.º 15/2009, sobre a retroactividade das valorizações indiciárias a 1 de Julho de 2007 e com a Lei de Prevenção e Combate à Violência Doméstica, de tal modo que levou um deputado, sempre bem atento, Pereira Coutinho, a afirmar, a este propósito, em Junho de 2016, que o artigo 25.º da Lei Básica é precisamente o artigo que mais violações sofre: “Esse artigo está constantemente a ser violado”. 

Refira-se, também, o caso, sobre o qual, oportunamente, nos pronunciámos, sobre o projecto de resolução, apresentado por Deputados que, pretendendo substituir a lei, queriam interferir nas competências dos tribunais, legalmente estabelecidas e no exercício da profissão forense. Acrescente-se, por último, a violação, pelo artigo 105.º do Regimento da Assembleia Legislativa, conjugado com a alínea a) do seu artigo 107.º, do disposto na parte final do artigo 75.º da Lei Básica, relativamente à apresentação de propostas de alteração, por parte dos Deputados, de propostas de lei em matérias atinentes à política do Governo.

IV – Se, por outro lado, olharmos para os acontecimentos que, em Hong Kong, têm posto em causa a unidade, a soberania e a segurança da República Popular da China, verificamos que lá, é, sobretudo, do lado da sociedade que têm surgido, por parte de sectores radicais, independentistas, os mais fortes ataques à Lei Básica da RAEHK e ao princípio ‘um país, dois sistemas’. 

Em Macau, os seus residentes, amantes da Pátria e da RAEM, pelo contrário, e como unanimente é reconhecido, não só não têm manifestado qualquer simpatia e adesão a esses ataques, como clara e inequivocamente os têm reprovado e rejeitado. E, contudo, estamos “a ser um bocado vítimas de uma conjuntura que nem será tanto nossa”, “estamos a pagar o preço daquela irreverência”, como afirmou, recentemente, o Presidente da Fundação Rui Cunha, referindo-se ao “Occupay Central”. 

Mas, se os ataques à Lei Básica, em Hong Kong, vêm, sobretudo, do lado de certos sectores minoritários e extremistas da sociedade, o perigo dos ataques à Lei da Básica, na RAEM, vêm, maioritária e sub-repticiamente, do lado do Executivo e mesmo do Legislativo, que deveriam ser os primeiros órgãos de direcção política da RAEM a preocuparem-se com a sua defesa, o seu respeito e o seu rigoroso cumprimento. 

V – O anúncio da não renovação dos contratos dos juristas Paulo Taipa e Paulo Cardinal, da assessoria da Assembleia Legislativa é um caso de extrema preocupação para os residentes de Macau, em especial, para a comunidade portuguesa e, dentro desta, para a comunidade jurídica. Por via dessa “dispensa”, a Assembleia Legislativa perdeu dois juristas, unanimamente considerados como sendo altamente qualificados e com vasta experiência técnico-jurídica que, minuciosamente escrutinavam, com os demais juristas sob a sua direcção, as violações da Lei Básica, bem como o uso rigoroso das categorias dos vários ramos do Direito e o desenho sistemático da construção das disposições legais; eles serviam, também, de interface com os juristas do Executivo na busca das melhores soluções legais para os residentes de Macau, o que muito facilitava o trabalho dos operadores do direito e dos juízes; estes que são convocados, agora, a serem guardiães últimos da Lei Básica. 

Tal trabalho, a todos os títulos meritório, acabava por ajudar a compensar o défice que se verifica ao nível da formação (jurídica) da quase totalidade dos Deputados, sem pôr em crise a última palavra política sobre a versão final, que sempre incumbe aos Deputados. É certo que, a sociedade de Macau ganhou duas vozes que, certamente irão continuar a escrutinar essas violações, agora, sem as restrições e o comedimento que o cargo lhes impunha. Mas, Assembleia Legislativa perdeu-os, com manifesto prejuízo para o bom andamento dos seus trabalhos legislativos e, por via dela, é a própria RAEM que ficou mais pobre.

VI – O Presidente da Assembleia Legislativa tem sido apontado como um dos três candidatos a Chefe do Executivo e o mesmo não tem negado essa intenção. Sendo-lhe imputada a responsabilidade exclusiva pelo termo dos contratos dos mencionados juristas (veja-se o pedido de esclarecimento dos deputados Pereira Coutinho, Ng Kuok Cheong e Sulu Sou sobre essa não renovação), a mensagem que passou para a sociedade, é susceptível de ser objecto de várias interpretações, todas elas com impacto negativo na sua imagem: como um “saneamento político” (como tal já qualificada por alguns comentadores) e/ou como uma planeada troca de juristas portugueses (com qualificações e experiência excepcionais) por juristas chineses (jovens e, ainda, longe de preencherem tais requisitos) ou, mesmo por juristas portugueses sem os conhecimentos necessários e profundos da realidade da RAEM – o que, em qualquer dos casos, significa uma incompreensível desvalorização da importância da Lei Básica e da necessidade do seu rigoroso cumprimento -, ou como uma implícita, embora ainda não assumida, publicamente, desistência da sua candidatura. 

Com efeito, ao dispensar os melhores e mais experientes juristas, que o poderiam orientar, a si (bem como aos demais Deputados e Presidentes das Comissões) sobre o cumprimento rigoroso da Lei Básica, o Presidente da Assembleia Legislativa, por um lado, está a ir em sentido ao contrário ao dos outros candidatos a Chefe do Executivo, que têm procurado rodear-se de juristas com a capacidade técnica e experiência profissional que lhes permitam desempenhar bem o seu trabalho e apresentar uma folha irrepreensível: de resolução dos problemas dos residentes de Macau, sem violações da Lei Básica, ou, pelo menos, com o mínimo possível de violações. Por outro lado, que já não tenciona candidatar-se a esse lugar, deixando que o acto em causa seja entendido como fazendo parte da sua declaração de desistência à candidatura. 

Em qualquer caso, é lamentável que tais interpretações sejam politicamente possíveis, porque Ho Iat Seng, seria, inegavelmente, um bom candidato a Chefe do Executivo e talvez as Autoridades Centrais venham um dia a convocar, também, os Deputados da Assembleia Legislativa, o seu Presidente e os demais membros da Mesa, para receberem formação, em Pequim, sobre a Lei Básica e a imperiosa necessidade da sua defesa, à semelhança do que ocorreu já com os titulares dos principais cargos e o Procurador-Geral. A acontecer isso, não só as lacunas do Presidente da Assembleia Legislativa sobre a Lei Básica ficariam em condições de poderem vir a ser integradas, como a RAEM ficará a ganhar, porque a Lei Básica e o princípio “um país, dois sistemas” devem ser defendidos por todos: pelos seus residentes e responsáveis políticos. 

João Albuquerque* 24.08.2018

*Advogado

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