Início São Tomé e Príncipe O tempo parou e não avisou

O tempo parou e não avisou

Uma viagem que é um regresso ao passado, num país onde a vida corre sem pressa, onde tudo se vai fazendo sem se pensar muito no amanhã. Os olhos estão postos neste destino tropical onde está quase tudo por fazer, por descobrir e por sonhar.

Embora ainda não passasse das quatro da tarde, o Sol já ia baixo quando aterrámos em São Tomé. Num instante ficou de noite. Foi o tempo de jantar, beber uma cerveja local no bar, conversar e sentir o eterno verão: manga curta, calor que faz custar a respirar, ver um céu impressionante pintado pelas estrelas. A música de fundo ia tocando baixinho. Era sobretudo kizomba, estilo comercial com batida contagiante. A música liga as pessoas, seja em que parte do mundo for. Não foi preciso muito até todos os presentes começarem a bater o pé.

Foi um regresso ao passado, depois de uma experiência de voluntariado na ilha do Príncipe. Foi como voltar a casa, quando o bafo do calor nos apanhou sem surpresa à saída do avião. É sentir que se está demasiado ligado ao segundo país mais pequeno de África, à sua natureza incrível e, sobretudo, à simpatia das pessoas, aos sorrisos dos mais velhos que ainda guardam memórias dos anos coloniais, à inocência das crianças que brincam na rua, aos jovens adultos que vivem o sonho de conseguir estudar em Portugal.

O dia seguinte começa muito cedo, às seis da manhã, já com sol e calor. Numa carrinha de nove lugares partimos à descoberta do Sul. À saída da cidade, a primeira paragem: praia Melão e a sua comunidade piscatória à beira da estrada. Na areia, as pirogas estão apontadas para o mar e os homens trabalham as redes. Do lado de lá da via, numa casa de madeira, há tempo para uma conversa com o senhor Estêvão. De pé, e agarrado à sua velha máquina de costura, fala sem desviar o olhar de cada linha de pontos que traça. As motos chinesas a quatro tempos e as carrinhas de caixa aberta a transportarem pessoas e animais vão passando entre nós e a praia.

Costureiro há vinte anos, está atarefado a terminar uma encomenda grande de uniformes. «Nos últimos meses não tenho tido mãos a medir», diz sorridente e a olhar-nos pelo canto do olho. Mais uma linha de pontos para outro lado. Ao fundo, no areal, andam uns miúdos a brincar com uma pequena e improvisada embarcação à vela. O pouco vento que sopra no pano esticado faz aqueles três velejarem, entre uns bordos junto à areia, mostrando como se fazia a alguns curiosos que os fotografam. É o tempo de mais umas calças serem feitas pelo senhor Estêvão.

Voltamos a parar, desta vez em Santana, uma comunidade maior face à realidade do país, mas, ainda assim, onde toda a gente se conhece – como é costume. Perguntamos por um rapaz que se chama Edu. Era a indicação que nos tinham dado se fôssemos a Santana. «Edu? Não conheço. Espera um pouco», diz o guia. Enquanto se tiram fotografias à baía rochosa em frente, lá está ele.

Edu Guerra tem 21 anos e é um dos surfistas da ilha, assim como o amigo Hamilton Neves, de 19, que se rendeu ao bodyboard. São cerca de vinte os que praticam estas modalidades na ilha. Quando, há oito anos, viram pela primeira vez um português a apanhar umas ondas em Santana, eram miúdos e também queriam experimentar. «Resolvemos entrar na água com tábuas de madeira e fazíamos bodyboard», conta Edu enquanto gesticula com as mãos, imitando os movimentos das ondas. Esse português ajudou-os a fazer pranchas maiores e, trabalhando a madeira, conseguiram uma tábua com melhor aspeto: pesadas, umas bicudas, outras mais arredondadas. Os anos passaram e cada vez mais portugueses apareciam a dedicar-se à modalidade, proporcionando competições entre os rapazes e trazendo de Portugal material de melhor qualidade.

Edu não quer ser profissional, mas quando sai das aulas espreita o mar e se houver condições vai buscar a prancha. Agora que terminou o 12º ano tem mais tempo, mas o que gostava mesmo era de estudar Biologia ou Educação Física e Nutrição. Vai tentar candidatar-se a uma bolsa para estudar em Portugal. Tem saudades do português que o iniciou no surf e que viveu seis anos em São Tomé. «Vamos tirar uma fotografia juntos para enviar a esse português», dizemos-lhe. Foi ele, Pedro, quem nos deu a indicação de procurar por Edu em Santana.

A cada encontro inesperado, vamos tendo a certeza que são as pessoas que mais nos marcam nestas ilhas. O caminho pela estrada continua. Sentados na parte de trás da carrinha, com a janela entreaberta, admiramos o que se vê passar. E apetece parar em cada uma das barracas de fruta para ouvir mais histórias. As buzinas das motos que nos ultrapassam, crianças a correr na berma, calor, kizomba no rádio, mulheres que levam alguidares na cabeça e seus vestidos coloridos. É um dia normal em São Tomé.

À medida que nos dirigimos para sul, os arredores da cidade começam a ser trocados pelo verde. Quando o guia encosta a carrinha pouco à frente de uma ponte, a tonalidade é outra. Passam a ser muitas, vestidas e manuseadas pelas mulheres que lavam a roupa no rio Abade, nascido nos picos de São Tomé e desaguado na praia de Água Izé. Debruçados no muro de proteção lateral da ponte, admiramos aquela rotina, realidade de um país pobre financeiramente, mas rico na simplicidade.

São mulheres de todas as idades que esfregam a roupa na pedra. Ensaboam, mergulham na água e, com ou sem bebé às costas, há quem cante para se animar. Dolores é uma delas. Está mais à frente, sozinha, com água até aos joelhos e de volta da roupa da família. Conta que vai lá todos os dias: «Venho às seis e às doze acabo.» Carrega no corpo umas décadas valentes, suficientes para ter memórias do seu país antes da independência, em julho de 1975.

O cacau era o petróleo de São Tomé. O país chegou a ser o maior exportador do mundo, mas parou no tempo e hoje visita-se o que resta das roças, como Água Izé, a um minuto do rio. Dá para imaginar como terá sido: senzalas alinhadas, armazéns onde fermentava e secava o cacau, peças de maquinaria ferrugentas caídas e praticamente engolidas pela vegetação, a casa grande dos patrões e o enorme hospital de dois pisos a desfazer-se, que é hoje palco para brincadeiras de criança. Também se tropeça na linha férrea quase desaparecida, por onde o cacau já seco e dentro dos sacos era transportado até ao pontão e daí para os navios.

Tudo começou em 1822, quando os primeiros cacaueiros trazidos do Brasil foram mandados plantar naquela roça por João Maria de Sousa Almeida, o barão de Água Izé. Os colonos portugueses encontraram as condições naturais ideais, trouxeram a mão-de-obra escrava e tornaram esta produção agrícola na principal do país, acima do café.

Saímos da carrinha para visitar um dos locais onde a pouca produção resiste ao tempo. Crianças curiosas aparecem a correr. Há vários armazéns de teto e portas altas. Num deles está Germino. Todos os dias está ali, desde 1980. Mostra os cantos à casa e explica o processo do cacau: do campo vem o interior do fruto, uma goma branca e com cheiro intenso. Ali passa por várias fases de fermentação em tabuleiros que escondem a luz do dia, «para não perder a qualidade», até ficar rijo. Só depois é posto ao sol a secar em estufa durante oito a doze dias.

Germino leva-nos a todas as divisões. E sorri enquanto mostra como se separa o grão: «Escolho o bom e o mau, um a um». Daquele monte de grãos, seleciona para um balde os que se aproveitam, para depois serem embalados, pesados e transportados para o porto. «É exportado para Portugal. É a informação que temos. Não sei do preço. Isso é negócio do patrão.»

Vamos numa pequena avioneta de 18 lugares. A sensação é de adrenalina. O som da hélice abafa as conversas e os passageiros estão encostados às janelas. Tentam não pensar no pior, não sabem que estão a descolar para um dos locais mais especiais do mundo. O Príncipe não é uma ilha qualquer, não é um destino turístico nem um apêndice de São Tomé. Deixa um sentimento marcado e difícil de explicar em quem lá vai. Trinta minutos depois, o que se começa a avistar é o mesmo que os navegadores portugueses viram há 545 anos. Só muda a perspetiva. Tudo está tal e qual: verde, virgem e montanhoso. O primeiro impacto é o de um cenário misterioso, escondido por algumas nuvens baixas. Ao longe vê-se um arranhão comprido na paisagem, a pista.

Depois de lá se ter passado um mês, a sensação é a de voltar a casa. Cruzamo-nos com um e outro conhecido, há sempre um cheiro inconfundível. No Príncipe, ainda que nos últimos anos tenha havido algum avanço, tudo continua muito genuíno. Não há operadores turísticos à saída da casinha do aeroporto, não há autocarros para a cidade de Santo António – designada como a mais pequena do mundo –, nem filas de táxis. Só umas motos e alguns curiosos. Quem já vem com a reserva feita para um dos poucos alojamentos tem a carrinha à espera. Se não for o caso, a situação resolve-se. Tudo se resolve no Príncipe.

Saímos do aeroporto na direção oposta à cidade. Pelo caminho de terra batida, os ziguezagues, a cortar a densa vegetação que esconde o céu, estamos no único carro a fazer o trajeto. Cruzamo-nos com algumas crianças a brincar na berma. Há uma dúzia de casas e outra de habitantes. Apenas quatro por cento da população do país vive no Príncipe – pouco mais de sete mil habitantes.

A atribuição do estatuto de Reserva Mundial da Biosfera pela UNESCO a todo o território da ilha, em 2012, depois de um longo processo de candidatura e esforços para merecer a distinção, teve um impacto enorme de sensibilização na população. O trabalho junto das comunidades é diário e as áreas de atuação das equipas não se prendem só com a natureza e conservação, mas também com as pessoas e com o uso controlado dos recursos. Tudo em nome do desenvolvimento sustentável.

A Reserva, como património imaterial, pertence ao Governo e tem uma equipa local que garante o cumprimento dos objetivos muito rigorosos, à qual se junta o apoio de Estrela Matilde, portuguesa de 31 anos que há mais de quatro não consegue largar o Príncipe. Trabalha na Fundação Príncipe Trust, organização sem fins lucrativos concentrada na conservação da natureza e pertencente ao projeto HBD (Here Be Dragons). Como bióloga, conta que este «é um lugar extraordinário» para trabalhar. Poder ver espécies que só lá existem, explorar habitats únicos com mais de 31 milhões de anos e tentar perceber como é que lá chegaram e evoluíram são os seus desafios principais.

Os projetos que Estrela conduz têm sido alvo de notícias internacionais e a ilha tomada como uma referência no que respeita aos cuidados ambientais. Exemplo disso é a recolha de garrafas de plástico – ao recolher cinquenta, cada pessoa recebe uma garrafa reutilizável de aço. Desde 2014, a Fundação já conseguiu recolher mais de 370 mil, entregando cerca de 7500. Numa ilha com pouco mais de sete mil habitantes, são números surpreendentes. Sempre que há uma recolha anunciada, a fila cresce e cresce, dando a volta à pequena praça da cidade. Todos querem levar uma garrafa da Reserva para casa, mas a maior ambição é ajudar na limpeza e, dessa forma, contribuir para a preservação do estatuto atribuído pela UNESCO.

É isso que enche Estrela de orgulho: ouvir músicas locais com letras sobre a biosfera, ver crianças a jogar sobre a biosfera, conseguir mobilizar toda a ilha para limpar o plástico ou para correr numa maratona em prol da Reserva. Para esta alentejana-principana, «é um orgulho desmedido fazer parte da ilha e da história que o Príncipe está a criar». No entanto, diz que viver nesta «Gaiola Dourada» nem sempre é fácil, mas que são as pessoas que fazem que não queira ir embora.

Há, portanto, um «vírus contagiante» que se apanha no Príncipe e que deixa todos rendidos. O mesmo aconteceu com Mark Shuttleworth, sul-africano e milionário que se apaixonou pela ilha e quis desenvolvê-la através do turismo sustentável. Assim nasceu o projeto HBD, onde os investimentos ultrapassam os 150 milhões de euros e poderão ter retorno daqui a cinquenta ou sessenta anos. Para além de empregar professores, agricultores, funcionários de hotelaria, ter aumentado o aeroporto, ser proprietária do Bom Bom Resort, a HBD tem vários projetos em desenvolvimento, como a recuperação de roças degradadas para transformá-las em pousadas ou hotéis coloniais e voltar a produzir cacau, café, ananás ou baunilha. É assim nas roças Paciência e Sundy. Assim como dois pequenos novos resorts: um na praia Macaco e outro nas praias Sundy e Margarida. A roça Sundy é a maior da ilha e foi a mais importante nos anos coloniais. No entanto, o papel que lhe está atribuído não ficou por aí. Está para sempre ligada à Física e ao que revolucionou na história da humanidade.

Não é esse o impacto que se tem quando se chega. Primeiro são as antigas casas dos trabalhadores, o hospital degradado, a casa dos patrões – a família real portuguesa –, a linha férrea, a pequena fortificação e a capela. A Física vem depois, ou até só para os mais curiosos, com uma pequena placa que conta que ali a teoria da relatividade foi provada. Exato, na ilha do Príncipe, mais concretamente na roça Sundy, quando Arthur Eddington, astrofísico inglês, durante um eclipse solar a 29 de maio de 1919, confirmou os cálculos de Albert Einstein.

O caminho até à roça Sundy vale a pena. Faz-se por uma estrada de terra batida pintada de um laranja quase vermelho e que rasga a floresta. Queríamos encontrar o caminho para uma praia que diziam ser uma das mais espetaculares: a Margarida. Depois da boleia, a indicação que tínhamos era que, estando na roça, havia um trilho para seguir a pé. Perguntamos o caminho a um grupo de rapazes que joga à bola. O mais velho responde que nos íamos perder. Chama-se Jemilson e faz questão de nos acompanhar. Tem 18 anos, fala pouco e estuda na cidade.

Até à praia são 45 minutos por um trilho já gasto e à sombra de árvores que uma só pessoa não consegue abraçar. Pelo caminho explica algumas curiosidades sobre os frutos, fala sobre a vida no Príncipe. Conta que nos últimos dias tem ido a pé para a escola, duas horas de caminho. Não há transporte escolar por falta de combustível. O Príncipe tem de gerir a energia que vem de São Tomé.

O barco que parte da ilha maior traz combustível, carga, animais, mantimentos para os supermercados e algumas pessoas. Só parte semanalmente da outra ilha quando está cheio. E muitas vezes demora, também pelo mau tempo ou por avarias. Naquela semana já pouca ou nenhuma energia havia.

As palavras faltam quando se chega à praia Margarida. Areia dourada, palmeiras quase a cair na água transparente e céu limpo. Um homem, de pé na ponta das rochas, pesca o almoço para o resto da família no areal. Jemilson pede-lhe emprestada a catana, trepa a um coqueiro e, lá de cima, começa a deixar cair cocos. Um para cada pessoa que estava na praia. Deu para matar a sede e trincar qualquer coisa. No regresso à Sundy, outra caminhada de uma hora a subir, diz que o seu sonho é ser jogador de futebol profissional. Rimo-nos a discutir qual era o melhor clube português, vermelho ou verde, e quem era o melhor jogador do mundo – Ronaldo ou Messi. É difícil acompanhar-lhe o ritmo.

Chegamos ao ponto de partida agradecidos pela atitude do Jemilson, que não lhe passa sequer pela cabeça pedir alguma coisa em troca. Damos um abraço, prometemos que não esqueceremos o momento. A cada encontro inesperado, vamos tendo a certeza que são as pessoas que mais nos marcam nestas ilhas. 

Texto:Nuno Mota Gomes  •  fotografia:Fernando Marques | VOLTA AO MUNDO 10.08.2018

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