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“O altruísmo do espírito cabo-verdiano é tudo o que sempre quis”

Shauna Barbosa é poeta, filha de mãe norte-americana e pai cabo-verdiano. A sua escrita tem o sabor e o ritmo dos dois lados do Atlântico. Cape Verdean Blues, o primeiro livro da autora, está a ser recebido com entusiasmo.

Muitos leitores terão ficado a saber da existência da poeta Shauna Barbosa da mesma forma que este: através da entrevista que deu ao conhecido programa de rádio Bookworm, da estação norte-americana KCRW. Para se perceber porquê, basta dizer que Shauna aparece listada entre entrevistados recentes como Junot Diaz, Joyce Carol Oates ou Michael Ondaatje. O anfitrião e entrevistador do programa desde 1989, Michael Silverblatt, revelou-se encantado por um livro que um dos seus produtores lhe fizera chegar. Esse pequeno livro era Cape Verdean Blues, primeira coleção de poemas de Shauna Barbosa.

Depois de ter completado um Master of  Fine Arts no Bennington College, em Vermont, Canadá, e de ter publicado em diversas revistas literárias, esta descendente de cabo-verdianos, que decidiu honrar as suas raízes no título do livro dado à estampa pela University of Pittsburgh Press já este ano, é agora um dos nomes da cena literária norte-americana de quem se fala. 

Em entrevista ao PLATAFORMA a partir de Los Angeles, onde vive, Shauna Barbosa fala das visitas a Cabo Verde e da relação que mantém com a cultura daquele país, do crioulo e da sua própria linguagem emocional. Surpreendida com a receção que o livro tem tido, esta jovem mulher diz ser alguém em constante busca. “Eu estava e estou no meio de alguma coisa”, diz a autora que passou esta semana por Lisboa para participar na conferência Desquiet International, com nome inspirado no Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.

– Comecemos pelo título do livro. Porque decidiu chamar a esta coleção de poemas Cape Verdean Blues?

Shauna Barbosa – A coleção tem o nome do álbum do músico de jazz cabo-verdiano Horace Silver, The Cape Verdean Blues. Pareceu-me muito apropriado e adequado honrar os blues dos meus antepassados. Honrar a ‘sodade’ herdada com ritmo e palavras.

– Conte-me um pouco da sua história familiar.

S.B. – Os meus pais conheceram-se nos escritórios da Polaroid nos anos 80, em Boston, Massachusetts. A minha mãe é de Boston e a sua mãe é da Geórgia. O meu pai é [da ilha] do Fogo, em Cabo Verde. Crescer com duas culturas por vezes dá a sensação de que duas culturas são de mais. Estava e estou no meio de alguma coisa. Sabe bem estar sempre em busca de algo. O desejo faz-nos continuar e eu estou constantemente a tentar descobrir o que identidade significa para mim.

 – Ouvi uma longa entrevista sua numa rádio norte-americana, onde refere as visitas que fez a Cabo Verde. Quais são as memórias mais vividas que guarda dessa experiência?

S.B. – As cores. Das casas, dos edifícios, dos sinais. Na minha primeira visita, quando tinha 14 anos, estava convencida que a América nunca poderia conhecer aquele tom de azul que o céu tem por cima de Cabo Verde. Em 2002, ao regressar de carro do vulcão activo no Fogo, estava uma mulher na estrada e esperou que nós parássemos. Quando parámos, ela deu-nos vinho e desejou-nos felicidades. O altruísmo do espírito cabo-verdiano é tudo o que sempre quis para mim. Não importa a seca ou a pobreza, os cabo-verdianos dão muito de si mesmos através da comida e da dança.

– A Shauna é obviamente muito americana, mas é notório que Cabo Verde tem um papel na sua vida. De algum modo sente que ainda continua a viver entre duas culturas? Como é que se relaciona com a história e o povo dos seus antepassados?

S.B. – Continuo a estar absolutamente entre duas culturas. Apenas quando estava a trabalhar no meu livro pude perceber a minha relação com os meus antepassados. Sempre fui obcecada pelo mar e sempre escrevi sobre o mar. O mar foi tanto refúgio como desespero para os meus antepassados. E, quando tive de ler o meu livro como alguém que está de fora, senti isso. Foi bonito e humilhante. O poeta cabo-verdiano Jorge Barbosa escreve “Ai o mar/que nos dilata sonhos e nos sufoca desejos!”. Sinto-me purificada pela água salgada. Sinto-me em casa com o mar. Mas hoje em dia tenho pavor de nadar. Não sei onde irei parar.

– No livro, refere Cesária Évora e Amílcar Cabral. São referências importantes para si?

S.B. – Quando ouvia a música de Cesária Évora em criança, e aprendia sobre Amílcar Cabral, nunca pensei que eles permanecessem em mim. Não percebi a sua importância. Para mim, ambos representam liberdade. A sua existência ajudou a moldar a identidade de Cabo Verde. Eles definem o que significa continuar. Cesária fez arte, Cabral lutou. E, hoje em dia, arte e resistência são os movimentos de todos os movimentos.

– Por falar em referências, quem são os poetas e narradores que admira?

S.B. – Lucille Clifton, Ariana Reines, James Baldwin, Andre Dubus, Anne Sexton, Patricia Smith, Corsino Fortes, Jorge Barbosa, Etheridge Knight e Michael Ondaatje.

– Voltemos ao livro. Também há crioulo de Cabo Verde na sua escrita. Interessa-se pelo crioulo? Tem uma palavra ou expressão favorita?

S.B. – O crioulo cabo-verdiano está na minha língua. Uma das minhas palavras favoritas é ‘dispidida’, que significa adeus; uma festa de despedida.

– E quanto aos signos do zodíaco, porque é que decidiu utilizá-los como um dos elementos do livro, que nomeiam alguns dos textos?

S.B. – A astrologia está inserida na identidade. Ou a identidade está embutida na astrologia. Há orientação e conhecimento no zodíaco. Todos nós, às vezes, não queremos algo ou alguém que nos diga o que fazer? O que esperar? Para nos dar as respostas?

– Estará em Lisboa para a conferência Disquiet International. O que espera dessa visita?

S.B. – Tenho a sorte de estar num workshop com descendentes de países lusófonos. Só quero ler o trabalho deles. Quero ouvir as suas histórias.

 – O seu livro tem vindo a receber bastantes referências e atenção. É algo inesperado para si? Como lida com isso?

S.B. – Não fazia ideia de que Cape Verdean Blues faria o que está a fazer. Acreditava nele, ainda acredito nele. Mas o apoio nunca será esquecido. Faz-me responsável por mostrar amor, por falar quando me sinto comovida pela arte de outra pessoa. Levo as coisas um dia de cada vez. Estou apenas tão agradecida, muito grata, cheia de amor. O livro não me pertence mais. É bom ver que está a dar-se bem por sua conta.

– Interessa-se por outros géneros ou continuará a escrever apenas poesia?

S.B. – A seguir virá uma novela.

Hélder Beja 13.07.2018

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