Violência no norte

por Arsenio Reis

Dez homicídios nas aldeias remotas de Nangamede e Monjane, a 27 de maio, reacenderam os receios acerca da violência à solta, há noves meses, nas matas de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. Desta vez, algumas das vítimas foram decapitadas e esse pormenor correu mundo. Investigadores alertam: tudo se passa num território em que as redes criminosas estão mais presentes que a autoridade do Estado.

O último domingo de maio foi o mais sangrento. A ação foi atribuída ao mesmo grupo de alegada raiz islâmica que fez um cerco de dois dias à vila de Mocímboa da Praia, em outubro de 2017, em que invadiu postos de polícia e matou dois agentes. De então para cá, aldeias são saqueadas por desconhecidos com catanas e armas de fogo em confrontos que já provocaram um número incerto de mortes de residentes nesses locais isolados, sem eletricidade, sem asfalto, sem infraestruturas e sem presença permanente das forças de segurança: as aldeias têm se defendido como podem. Compram-se mais arcos e flechas. Muitas pessoas deixam as casas à noite, com medo, e dormem nas matas em redor da aldeia. Desde 27 de maio houve uma sequência de ataques mais mortíferos que até final de junho terão causado 35 a 40 mortos, entre civis, elementos das autoridades e insurgentes, em aldeias dos distritos de Nangade, Palma, Mocímboa da Praia, Macomia e Quissanga. Centenas de casas foram incendiadas. Pelo menos duas mil pessoas saíram das aldeias e procuraram refúgio em casa de familiares e amigos nas sedes de distrito e nas ilhas do Ibo e Matemo.

Nunca houve nenhuma reivindicação relacionada com estes ataques, além da vontade de impor uma sharia (lei islâmica), expressa por alguns dos cerca de 30 homens que participaram no ataque inicial a Mocímboa da Praia. Faziam parte de uma nova mesquita da vila que renegava ao Estado, cujos integrantes não deviam levar as suas crianças à escola convencional e tinham de cobrir as mulheres com trajes adequados – entre outras limitações às liberdades individuais. 

Nassurulahe Dulá e Saide Bacar, dirigentes muçulmanos em Pemba (capital provincial) e Montepuez, respetivamente, culpam “líderes religiosos estrangeiros” que desde 2014 começaram a instalar estas novas mesquitas e aproveitam-se de uma base social “que vive na pobreza, com fome”, que se sente marginalizada pelo poder político e pela sociedade, numa região onde pelo menos duas etnias, mwani, muçulmana, e makonde, cristã, têm um histórico de atritos.

O que se passa nos bastidores nada tem a ver com religião, de acordo com o testemunho de um trabalhador muçulmano em Palma, sede de um dos distritos afetados. Natural de Olumbe, povoação próxima das aldeias atacadas, este residente fala de apoios como moeda de troca. Na sua comunidade, de etnia mwani, tomou conhecimento de negócios financiados pelos novos líderes islâmicos que, em contrapartida, pedem lealdade às mesquitas que instalam.

“Eles diziam: se rezar nessa nova mesquita, vamos dar dinheiro para fazer negócio. Vamos ajudar”. Mas nem todos os que obtiveram financiamento para um novo barco de pesca ou carrinha para transporte informal terão aceitado mais tarde cumprir ordens, abrindo terreno para conflitos. Supõe-se que algumas dessas ordens implicavam pegar em armas e deslocarem-se para acampamentos no mato. 

João Pereira, Salvador Forquilha e Saide Habibe, autores de um estudo preliminar sobre “Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique” apresentado em maio, em Maputo, referem que o dinheiro para aliciar membros vem de redes de tráfico ilícito de madeira, rubis, marfim e carvão em Cabo Delgado. Redes em que “os líderes do grupo estão envolvidos”, redes que alimentam também outras estruturas no estrangeiro, “por exemplo, os comandos de milícias no Congo, Somália, Quénia e Tanzânia”, numa dinâmica que pode servir também para comprar armas, refere João Pereira.

Um artigo publicado em abril pela organização Global Initiative, com sede em Genebra, acrescenta que o tráfico de heroína oriunda do sul da Ásia com destino à Europa e África Austral passa por Cabo Delgado e os ataques podem ser reflexo de movimentações quanto ao controlo das rotas. A autora, Simone Haysom, defende que alguns grupos marginalizados em Cabo Delgado “têm visto ao longo dos anos como a fronteira e os portos são permeáveis a todos os tipos de contrabando” e podem querer uma parte do bolo. Segundo o retrato feito pelos estudos na região, tudo se passa num território em que as redes criminosas estão mais presentes que a autoridade do Estado.

A rota opiácea atravessa Moçambique há, pelo menos, duas décadas, numa rede criminosa que envolve traficantes e a elite política, acrescenta o relatório “Costa da Heroína”, publicado neste mês de julho pelo projeto Enact, financiado pela União Europeia. As dificuldades impostas aos traficantes a norte está a fazer com que o tráfico procure mais espaço a sul – ou seja, em Moçambique.

MUITAS DETENÇÕES, POUCOS ESCLARECIMENTOS

A 06 de maio, a polícia moçambicana anunciou ter recolhido em Nangade, perto da fronteira com a Tanzânia, três mulheres foragidas do esconderijo de uma das células armadas que tem atacado aldeias. O que esconde o mato continua a ser um desafio, até para as autoridades. 

A Polícia da República de Moçambique (PRM) tem anunciado desde os homicídios de 27 de maio que os ataques estão agora a ser feitos por um número reduzido de elementos que tenta sobreviver, alegando que o grupo tem sido desmembrado pelas autoridades, com centenas de pessoas já detidas desde outubro de 2017.

“Este é um grupo que foi amplamente fragilizado” e os últimos crimes representam “um total desespero em tentar buscar algum protagonismo”, refere Inácio Dina, porta-voz da PRM, contrariando a ideia de que esta escalada de violência signifique um aumento da ameaça à segurança em Cabo Delgado.

Apesar das detenções, não tem havido esclarecimentos, além da divulgação pelas forças de segurança, em dezembro, dos nomes de dois moçambicanos, Nuro Adremane e Jafar Alawi, como supostos organizadores do ataque inicial a Mocímboa da Praia, hoje em parte incerta, depois de estudarem doutrinas religiosas e receberem treinos militares na Tanzânia, Sudão e Arábia Saudita. 

Luís Fonseca-Exclusivo Lusa/Plataforma Macau  06.07.2018

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!