Um País, Uma Língua

por Arsenio Reis

Residentes e académicos alertam para o risco do desaparecimento do cantonês. Acusam o Governo de falhar na defesa da língua local e permitir que o mandarim prevaleça. A Educação diz que não.

Isa Manhão e Pak Chan foram alguns dos muitos residentes de Macau e de Hong Kong que se manifestaram publicamente em defesa do cantonês. Aderiram ao movimento que surgiu no Facebook e publicaram fotos de perfil com a mensagem “O cantonês é a minha língua materna”. O movimento surgiu na sequência de um artigo do académico Song Xinqiao que defende que o cantonês não pode ser considerado língua-mãe. Apesar da publicação estar no site dos Serviços de Educação de Hong Kong desde 2013, só agora despertou a atenção porque começou a circular nas redes sociais. A posição de Song Xinqiao, que leciona na Universidade de Hong Kong, gerou polémica lá e cá. 

Em Macau, mais de 80 por cento da população tem o cantonês como língua-mãe. Continua a ser a maioria, mas cresce a preocupação de que o tempo acabe por o relegar para segundo plano face ao mandarim e à semelhança do que já acontece em Cantão, no sul da China Continental. Os sintomas, defendem residentes e académicos, são evidentes. O Executivo garante que, apesar do “Amor à Pátria”, o carinho pelo cantonês não desapareceu. 

Línguas

Isa Manhão explica porque se juntou ao movimento. “É difícil conformarmo-nos de que temos de aceitar o mandarim como língua de uso diário. Sempre que saímos de casa era e continua a ser o cantonês que falamos.”

Pak Chan também alterou a foto de perfil do Facebook para marcar posição contra o académico. “O cantonês é a minha língua-mãe e da maioria da população. Tem um papel crucial na literatura e cultura chinesas. É uma vantagem que Macau continue a ser um dos locais onde ainda se usa o cantonês e o chinês tradicional”, vinca.

Johnson Chao não adotou a imagem de perfil, mas também se manifestou publicamente sobre o tema. O jovem de 25 anos não resistiu a partilhar uma foto no Facebook de um grupo de estudantes locais por ter ficado indignado de estarem a falar mandarim.

“Primeiro, não sou contra a aprender ou falar-se mandarim”, faz questão frisar. “Publiquei a foto porque é estranho ouvir alunos a falarem em mandarim para comunicarem fora da escola.”

Entre as reações, houve quem relativizasse – tendo em conta que cada vez há mais migrantes do Continente no território -, e quem fosse mais critico. “Confrontaram-me se acharia invasão cultural se os estudantes estivessem a falar japonês. Disseram-me que devia ser mais mente aberta e não me fechar só em Macau”, conta o jovem, agora a viver em Portugal para aprender português.

Até ao ensino superior diz que raramente falava mandarim fora da disciplina. A língua só começou a ser mais frequente quando foi para a Universidade de Macau. Uma mudança que considera “fazer sentido” já que a instituição aspira a internacionalizar-se. “Na minha cabeça, durante a primária e o secundário, ainda se usaria o cantonês. Deparar-me com um grupo de alunos do secundário a falar em mandarim, chocou-me bastante”, confessa. 

A língua chinesa é a mais usada em Macau. É assim, sem fazer diferença entre o mandarim e o cantonês, que a Direção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) responde à pergunta do PLATAFORMA sobre qual é a principal língua veicular de ensino. “A língua chinesa, a língua oficial mais usada em Macau, é ensinada, atualmente, em todas as escolas locais, sendo que nestas não existe uma distinção de utilização do cantonês ou do mandarim em termos de língua veicular do ensino”, realça o organismo.

De acordo com o “Quadro Curricular”, se a escola tiver o chinês como primeira língua, tem de incluir o mandarim. Se tem o chinês como segunda língua, pode incluir o mandarim, mas não é obrigada. “As escolas devem permitir que os alunos tenham uma aprendizagem, tanto em cantonês como em mandarim, organizando, de modo flexível, os currículos e as horas letivas de aprendizagem e formando as capacidades linguísticas dos alunos”, reforça.

A DSEJ não adianta qual a percentagem de escolas que usa o mandarim como língua veicular, nem quanto gastou o Governo para promover o ensino do idioma.

Já o Gabinete de Apoio ao Ensino Superior refere que, de acordo com a legislação, as instituições de ensino superior têm autonomia académica e pedagógica. “Podem definir o conteúdo das disciplinas, a língua veicular dos cursos e outros aspetos.”

Atualmente, acrescenta o gabinete, as línguas veiculares dos cursos de ensino superior são, principalmente, o chinês – sem precisar se impera o cantonês ou o mandarim -, o português e o inglês.

Ao PLATAFORMA, a Universidade de Macau diz que o inglês é a principal língua de ensino, havendo na insitutição programas em chinês, português e japonês. A UMAC refere ainda que há estudantes locais e nao locais, mas não tem dados sobre a língua-mãe dos alunos.

Já a DSEJ acrescenta que cerca de 83 por cento da população entre os 3 e os 24 anos tem o cantonês como primeira língua e oito por cento o mandarim. 

Os Serviços de Educação e Juventude referem ao PLATAFORMA que, com base nos Intercensos de 2016, nota-se que “à medida que a idade aumenta, a percentagem de pessoas que domina o mandarim também cresce”. 

Na população dos 15 aos 24 anos, perto de 85 por cento fala cantonês além de outras línguas e cerca de 73 por cento domina o mandarim. Os números, defende a DSEJ, mostram “que os alunos, de uma forma geral, podem utilizar o cantonês ou o mandarim na aprendizagem”.

A DSEJ refere ainda que dos 6.259 professores de educação regular – excluindo diretores, quadros médios e superiores de gestão das escolas -, 883 usam o mandarim como língua veicular de ensino no ano letivo que está a decorrer, ou seja, cerca de 14 por cento do total.

Identidade(s)

Rui Rocha, doutorado em Políticas Linguísticas de Macau, critica a ausência de um setor que pense o peso e o estatuto que o cantonês, o putonghua*, o português e o inglês devem ter no sistema educativo, mas defende que há uma “intenção política” que visa a introdução progressiva do putonghua como língua veicular de ensino. 

Dá como exemplo as turmas bilingues da escola primária Luso-Chinesa da Flora e a escola pública Zheng Guanying, onde o mandarim é a língua de aprendizagem. “Ainda são experiências, mas são indiciadoras”, sublinha.

Outro sintoma, acrescenta o investigador, é o discurso dos académicos que vêm a Macau, e defendem que o putonghua deve ser impulsionado e a língua veicular de ensino para a unidade da Pátria.

Joe Tang, vice-presidente da Associação de Escritores de Macau, deixou claro que falaria sobre o tema, mas apenas a título pessoal e não em nome do grupo. 

O escritor, que também trabalha no Instituto Cultural, nota que há cada vez mais pessoas que falam mandarim. “Não sei se são do Continente ou se se deve ao facto de a educação em mandarim se estar a tornar mais comum e de haver mais qualidade no ensino da língua nas escolas.” 

Isa Manhão também sente que se ouve mais mandarim nas ruas e admite que a entristece que muitos migrantes, “que nem dominam o cantonês”, lhe perguntem onde aprendeu a língua e há quantos anos vive em Macau. “Deixa-me triste por me fazerem sentir que não sou de Macau.”

Para Johnson Chao quem chega devia ter a preocupação de aprender a língua local. “Quem vem da China sabe que em Macau se fala cantonês. Que eu saiba, no Continente, também usamos o mandarim”. 

Joe Tang discorda que o cantonês vá desaparecer, mas admite que perderá destaque. “Talvez o mandarim se torne a principal língua de comunicação e o cantonês passe a ter o papel de idioma regional”, prevê o autor que nasceu em Xangai. 

Ainda que elogie a evolução do mandarim no território, não esconde que a secundarização do cantonês vai ter “um grande impacto na noção de identidade” dos residentes. “Mas isso também se deve ao facto de não nos esforçarmos, suficientemente para fazer um uso melhor da língua.”

Como pai diz sentir uma enorme dificuldade em encontrar músicas e desenhos-animados em cantonês. “É da responsabilidade de todos nós, que vivemos em Macau, refletir como podemos tornar a aprendizagem do cantonês mais interessante, fácil e atrativa”, aponta.

Pak Chan diz que a filha mais velha, que está no jardim de infância, fala em cantonês nas aulas e em casa, mas confessa temer que a língua caia em desuso com as próximas gerações. “Tendo em conta que mais empresas e pessoas do Continente estão a vir para Macau, o Governo pode começar a exigir que se passe a falar em mandarim no trabalho e que os professores ensinem na língua. Pode mesmo chegar a proibir o uso do cantonês nas escolas. Se reduzir o uso do cantonês na vida diária, as pessoas acabarão por não querer falar ou aprender o idioma”, receia. 

Chan quer que as filhas aprendam o mandarim – tendo em conta que é a primeira língua no Continente e que é cada vez mais útil -, mas sem prejuízo do cantonês. “O mandarim pode ser ensinado como uma segunda língua”, vinca. 

Os Serviços de Educação e Juventude garantem estar a trabalhar para divulgar a identidade, a cultura e a língua de Macau, sem nunca esquecer que a região agora tem uma Mãe. “O Governo presta grande atenção aos trabalhos de educação do amor pela Pátria e por Macau”, salientam. Nesse sentido, acrescentam, foi promulgado, em 2011, o “Planeamento para os Próximos 10 Anos para o Desenvolvimento do Ensino Não Superior de Macau”. O objetivo é “reforçar o conhecimento e o sentimento de identificação com a Pátria e Macau dos alunos”. 

No âmbito do diploma, as escolas são obrigadas a ter Educação Moral e Cívica que deve levar os alunos a “valorizar e apreciar a grande tradição cultural do País, das várias etnias e de Macau, e conhecer a sua identidade nacional” assim como “ter em atenção o desenvolvimento de Macau e do País”. 

Deve ainda fazer parte do currículo do ensino secundário a disciplina “Sociedade e Humanidade”. É suposto que na cadeira existam conteúdos sobre a História e Geografia de Macau para “reforçar o conhecimento dos alunos sobre a região e o seu reconhecimento da identidade”. A DSEJ faz questão de reiterar o objetivo: “fortalecer os sentimentos de amor pela Pátria e por Macau”.

Amor à Mãe

Para Rui Rocha haveria “todo o interesse” que Macau, como segundo sistema, desse prevalência ao cantonês já que é a língua da maioria da população. Ressalva, no entanto, que há que ter em conta que se está a falar da China e recorda o que disse Ma Rong. “Cada língua e uma minoria que se perdem é um bem para a unidade da Pátria”, afirmou o sociólogo da Universidade de Pequim. 

Se nos regimes democráticos os direitos linguísticos fazem parte dos direitos, liberdades e garantias, e direitos humanos, na China, sublinha, a conversa é outra. “Dá prioridade à unidade da Pátria – uma língua, um povo, uma nação. Para a China, não faz sentido haver uma proliferação dos sete grupos linguísticos chineses no sistema educativo. A perspetiva da China é a unidade também a partir da unidade da língua”, explica o investigador que também se dedica ao estudo das políticas linguísticas da China para as minorias étnicas e outras línguas.

Francis Choi, professor de métodos de ensino da língua chinesa na Universidade de São José, defende que é evidente que há interferência política na educação. “E a situação está a tornar-se séria”, alerta. 

Choi diz que se começou por uma abordagem subtil – aumentando o ensino do mandarim nas escolas primárias e secundárias – para, progressivamente, a língua deixar de ser só uma cadeira e começar a ser o veículo de ensino noutras disciplinas. “Ensinar chinês em mandarim é um exemplo óbvio. Não me oponho ao uso do mandarim, mas temo que aconteça o mesmo que em Cantão”, afirma.

O professor, que também já foi diretor da Escola Católica Estrela do Mar, diz que no Continente as escolas são obrigadas a usar o mandarim e há restrições ao uso de outras línguas. “Cantão é um exemplo perfeito. Tradicionalmente era uma cidade onde o cantonês era a língua primordial na vida diária e na educação. Hoje, cada vez menos crianças falam cantonês. O mandarim, graças às medidas administrativas, foi bem-sucedido na eliminação do cantonês”, realça.

Rui Rocha insiste que não se pode apagar uma língua com cerca de 85 milhões de falantes, mas ressalva: “A questão é como na diversidade conseguimos criar a unidade. Mas a mensagem da China é muito clara, é só o mandarim e o putonghua.”

Coexistência pacífica

O poeta aceita que haja uma língua oficial – que permita que todos se entendam – mas que coexista com os restantes idiomas que se falam no Continente, e sublinha a importância do cantonês. “No estudo da linguística chinesa, é consensual que não se pode estudar a evolução da fonética sem ir aos fósseis da língua que estão no chinês médio que se falava na Dinastia Tang e que é o equivalente ao cantonês”, explica.

O putonghua, acrescenta, só surge nos finais do Império Ming, em meados do século XVII, é uma língua sem falantes e que só se aprende na escola.

Já Francis Choi realça que o cantonês é linguisticamente mais rico nos significados, forma e oralidade. “Apesar disso, o Governo, sobretudo o Instituto Cultural e os Serviços de Educação, não promove, apoia ou implementa medidas no sentido de o preservar”, critica.

O escritor Joe Tang fala inglês, mandarim e cantonês. Na escrita usa o chinês, sem dizer qual prevalece já que, refere, não há grande diferença no papel. “De vez em quando, uso a gíria local. Dominar ambos os idiomas é uma mais-valia no ato da escrita”, realça. 

Apaixonado pelo cantonês, explica a magia da língua. “Resulta de uma série de elementos históricos, culturais e sociais. Perceber o cantonês é como descodificar um criptograma”, descreve.

O escritor dá como exemplo a palavra “Namorar” que surgiu por causa da imagem dos barcos de pesca atracados uns aos outros, nos tempos em que a a atividade piscatória era tradicional no território. 

Impedir que o cantonês morra, reitera Tang, é fazer com que estas histórias perdurem. “Grande parte do desafio passa por transmitir os significados por detrás das palavras às próximas gerações. Não apenas como uma língua, mas como um diálogo cultural e, perceber que está nas nossas mãos enriquecê-lo e alimentá-lo”, salienta.

O cantonês, realça Francis Choi, é a língua e um elemento identitário da população do Sul, diferente dos falantes de mandarim, do norte da China. Para o professor, “é indiscutível” que o mandarim se vai tornar uma língua internacional mas defende que um Governo aberto e democrático deve incentivar a diversidade, tanto ao nível das comunidades como das línguas. “A língua é uma característica que faz de Macau uma região administrativa especial. Viver passa por nos sentirmos confortáveis e naturais. Estas qualidades estão asseguradas quando os residentes de Macau falam em cantonês”, reforça.

Rui Rocha recorre à Índia – que tem 22 línguas constitucionais e 16 alfabetos – para mostrar como é possível respeitar a heterogeneidade. “Ninguém morreu por falar a língua do Estado, da região, o inglês entre outros idiomas”, exemplifica.

Mas há um detalhe: “O quadro referência de um país democrático é um. O da China é o da união, o da harmonia do mundo chinês, que não pode passar por clivagens, antagonismos e diferenças.” 

*Mandarim – Putonghua

O mandarim é o idioma padrão da língua chinesa e tem como base o dialeto que era falado em Pequim, o pequinês. Tem 80 mil carateres, sendo que os mais usados são apenas sete mil. Uma pesquisa nacional do Ministério da Educação da China refere que 94 por cento dos chineses fala mandarim, a língua oficial do país, designada de putonghua no Continente, e Guoyu, em Taiwan. Estima-se que sejam 55 as minorias étnicas, todas com línguas próprias.

Mandarim para todos

Incentivar as escolas a usar o mandarim em vez do cantonês nas aulas de chinês faz parte do plano para a Educação do Governo de Hong Kong para a próxima década. O Executivo da região já gastou 180 milhões de dólares de Hong Kong para apoiar as escolas a concretizar a medida. Números oficiais mostram que mais de 70 por cento das escolas primárias já usa o mandarim nas aulas de chinês.

Catarina Brites Soares  22.06.2018

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