“Estou muito atento à questão dos direitos, liberdades e garantias”

por Arsenio Reis

Leonel Alves diz ter algum receio face a eventuais alterações ao Código Penal e Código de Processo Penal. Salienta que é preciso preservar os direitos fundamentais e defende diálogo com especialistas da China continental. 

Considera que o futuro Chefe do Executivo deve ter um bom conhecimento económico, mas não exclui nenhum dos nomes mais falados: Lionel Leong, Ho Iat Seng e Wong Sio Chak. 

É membro do Conselho Executivo e abandonou a Assembleia Legislativa em agosto do ano passado, após 33 anos como deputado. Sendo uma das principais vozes da comunidade macaense, Leonel Alves é também membro da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. 

Em entrevista ao PLATAFORMA, o advogado faz um balanço positivo da implementação da Lei Básica, mas reconhece que há motivos para uma maior atenção à questão dos direitos liberdades e garantias, admitindo poder vir a ter um papel mais ativo nessa defesa. Quanto ao futuro, olha com optimismo para o processo de integração da Grande Baía Guangdong-Hong-Kong-Macau e espera que o próximo Chefe do Executivo tenha sensibilidade para as questões económicas. 

Comemoramos agora o 25o aniversário da promulgação da Lei Básica pela Assembleia Popular Nacional. Foi esta a melhor solução, uma boa solução ou a solução possível?

Leonel  Alves – Creio que foi a melhor solução. Não podia haver outra melhor que esta de consagrar em Macau o princípio Um País Dois Sistemas, garantir a continuidade do sistema previamente vigente – incluindo a maneira de ser, todo o ordenamento jurídico, todos os direitos adquiridos na vigência da administração anterior. 

A melhor prova que a Declaração Conjunta e a Lei Básica são respeitadas é o facto de estarmos todos aqui a conversar, a trabalhar e a falar sobre Macau, o presente, o passado e sobretudo o futuro. 

– Não obstante essa avaliação geral positiva que faz, nos últimos anos e mais concretamente nos últimos meses, vários observadores têm manifestado inquietação face ao respeito integral pelos capítulos dos direitos, liberdades e garantias. Subscreve essas preocupações? 

L.A. – O que eu posso dizer, numa perspetiva de advogado, que tem tido casos em tribunais lidando com processos-crime, é que há muita coisa, de facto, a melhorar. Mas isto é extensivo a Portugal e a outros países de estados chamados de democracia liberal, que conheço. Os problemas em Portugal não são muito diferentes, conforme contactos que tenho tido com colegas. Aqui assume alguma particularidade porque tem um contexto muito próprio e temos um sistema judicial relativamente jovem.

– O Juízo de Instrução Criminal tem feito um bom papel? Tem feito o que se espera dele?

L.A. – Cada um tem a sua experiência. Há sem dúvida situações, como em qualquer outro país do mundo, que nós não podemos dizer que são perfeitamente concordantes com esses princípios. Mas isto faz parte da dinâmica de desenvolvimento da sociedade e é importante haver massa crítica, vozes conscientes na sociedade civil a reagir e a transmitir as preocupações. Nem tudo está mal. Nem tudo está bom. É como tudo na vida. Há coisas boas e coisas más e encontrar a melhor solução para o bem-estar da população no quadro das garantias do princípio ‘Um País, Dois Sistemas’.  

– E em Macau temos essa massa crítica? Temos vozes suficientes em qualidade e quantidade nas várias comunidades para desempenhar esse papel?

L.A. – Constato que não é o suficiente. Existem forças, existem vozes, mas constato que, numericamente as vozes não são muitas. E às vezes o alcance e o grau de receção dessas vozes não é o maior. Mas não quer dizer que fiquemos sentados e que nos resignemos. Acho que devemos – cada um de acordo com a sua esfera de atuação no seu dia-a-dia – tentar. Não somos muitos aqui em Macau. Aqueles que estão mais ligados a estes assuntos deverão encontrar formas de organização e de transmitir junto das instâncias próprias aquilo que deve ser melhorado. Fala-se por exemplo com alguma acuidade na necessidade de rever o Código Penal, o Código de Processo Penal, etc. Há quem diga que rever não é boa coisa porque, às vezes, certas revisões acabam por ser mais um retrocesso que um avanço.

– Tem esse receio?

L.A. – Algum. Tenho algum receio. De facto, com a experiência tida nos últimos anos, não só ao nível do Código Penal e Processo Penal, como noutras áreas legislativas, creio que não estamos ainda num patamar de amadurecimento científico-doutrinário suficiente para fazermos voos mais audazes em termos de reformas jurídicas. Portanto, as cautelas têm de ser as maiores. Sobretudo no âmbito da proteção dos direitos, garantias, da propriedade privada, da liberdades de circulação, da liberdade de informação.

– E se as autoridades decidirem mesmo avançar com a revisão dos Códigos (Penal e de Processo Penal) como tem sido proposto?

L.A. – Se houver um movimento e se a conjuntura política for propícia para repensarmos, para reformarmos o Código de Processo Penal, o Código Penal, acho que a classe jurídica, as pessoas mais ativas na sociedade deverão fazer finca-pé face a vários valores que estão, aliás, consagrados na Lei Básica. Têm de ser é melhor detalhados, pormenorizados, implementados e discutidos. Pode haver diferentes pontos de vista. E este convívio em Macau e fora de Macau com os intelectuais do interior da China pode ser algo de muito frutuoso para todos nós, porque, dos contactos que tenho mantido com juristas chineses há também – na própria China – uma preocupação cada vez maior de proporcionar aos cidadãos um quadro de garantias. E é este diálogo cultural interativo que deve ser mantido. Não há nenhuma intenção de restringir os direitos.

– Há riscos de erosão do sistema jurídico, nomeadamente ao nível das garantias e dessas liberdades que referiu? 

L.A. – Com toda a sinceridade, creio que é o momento adequado para fazermos uma reflexão conjunta. Estarei a enganar-me a mim próprio se negar que há um risco de erosão. Temos de ter uma consciência cívica mais forte. Talvez mais debates, mais interação com as instâncias competentes para que este sistema de garantias melhore. 

– Concorda com os que alertam para o risco de uma deriva securitária ou mesmo autoritária em Macau? 

L.A. – Nos últimos tempos, desde os polícias que andam com câmaras, a videovigilância, proibir a entrada de determinadas pessoas, o caso dos escritores no último evento da Rota das Letras. A imprensa tem relatado isto e tem transmitido essas ideias, porventura exageradas, de preservação da segurança. Fala-se muito da segurança do Estado, da segurança do território. A segurança do Estado nunca foi posta em causa. Muitas das medidas anunciadas provêm de um sentir da sua necessidade. Talvez tenham de ser melhor explicadas à sociedade. Porque há determinadas medidas que nós chamamos de securitárias. E também ao aplicar estas leis pode haver desvios. E isso é que é importante detetar, denunciar. Os princípios não são maus, mas na aplicação pode haver desvios e temos de estar alerta.   

– Falando em específico da Lei de Defesa da Segurança do Estado. Em 2009, Macau avançou com a legislação. Qual é então a necessidade de mexer na legislação através de diplomas complementares como foi anunciado? 

L.A. – Em primeiro lugar, a República Popular da China podia, perfeitamente, na altura da redação da Lei Básica, não incluir o Artigo 23 e todas estas matérias serem objecto de uma lei nacional. Assim não o fez. Porquê? Em meu entender por causa de Hong Kong. Houve depois uma experiência muito negativa em Hong Kong que conduziu à saída do primeiro Chefe do Executivo. Em Macau, em 2009, entendeu-se, politicamente que era adequado suprir esta omissão legislativa. Encaro como um ato político do Chefe do Executivo de então de movimentar forças políticas e os técnicos jurídicos que é muito consentânea com a matriz portuguesa. Daí que o processo de consulta e de aprovação tenha sido relativamente pacífico, havendo um consenso quase a 100 por cento na sociedade. 

– Mas não há casos conhecidos em Macau… 

L.A. – Diz e bem, até hoje não houve nenhum caso e ainda bem, mas não quer dizer que não possa haver. Quando legislamos algo, sobretudo em matéria criminal, esperamos que não haja clientela, mas não quer dizer que, não havendo atos que indiciem a prática desses crimes, isso implique a inexistência de legislação. O facto de não haver nem se prever que futuramente venham a haver casos dessa natureza ou de grande quantidade – fala-se muito na regulamentação, na criação de um hipotético órgão ou unidade para ter em conta a incumbência de investigar casos. Tudo isto se enquadra num quadro político constitucional.

– Acha mesmo necessário avançar com essa regulamentação?

L.A. – Se é ou não necessário é uma questão política.

Terão as nossas polícias, PSP e PJ, capacidade ou quadros e departamentos qualificados para essas matérias? Confesso que não tenho neste momento elementos concretos ou científicos para uma conclusão. Encaro isto como um sinal político de que Macau está de alerta. Este assunto não é esquecido – é uma questão muito sensível a nível nacional e Macau como faz parte de um todo, da China, deve estar também preocupada com a questão da segurança nacional. Não acho que, sinceramente seja desenquadrado.

– Há dias partilhou uma preocupação: que essa unidade e outros instrumentos que venham a ser criados no âmbito dos diplomas complementares à lei de Defesa da Segurança do Estado pudessem, inadvertidamente, criar algo como uma polícia política. Pode explicar o que quis dizer? 

L.A. – É  muito simples. Acho que as intenções políticas podem ser as melhores. O meu receio é a aplicação prática daquilo que se quer implementar. Perguntaram-me se havia este risco, de se criar uma polícia política. Não creio que possa vir a surgir, mas também não estou convicto de que possa inexistir por completo. É melhor estarmos todos de alerta e evitar que certas pessoas, inadvertidamente, por um abuso dos poderes venham depois intrometer-se na vida privada das pessoas e colocar Macau num patamar que nós não desejamos, que é de desrespeito dos direitos fundamentais. 

– Ao longo dos últimos meses assistimos a declarações, quer de dirigentes do Gabinete de Ligação do Governo Central, quer de dirigentes locais, que confluem num discurso visto como securitário e numa certa abordagem ao patriotismo. Como avalia isto? 

L.A. – Há uma relação de causa-efeito. Há quem não concorde comigo. Acho que a causa mais próxima deste aumento de medidas securitárias tem a ver com o que aconteceu em Hong Kong. É a causa mais próxima. Estamos a falar do Occupy Central, juramentos jocosos no Conselho Legislativo de Hong Kong, deturpar o hino nacional num evento desportivo num jogo de futebol em Hong Kong. Tudo isto não foi positivo. 

O que aconteceu em Hong Kong é do desagrado de Pequim. E o Governo Central tem a legítima preocupação de que a situação em Hong Kong possa descambar para pior. Tenho um amigo, já de proveta idade, que sempre me ensinou o seguinte: Macau e Hong Kong são terras para fazer negócio não é para fazer política, e sobretudo política anti-China. É impossível. Se temos a Lei Básica, a Declaração Conjunta e todo este quadro que nos permite continuar a viver em Macau, temos de respeitar o Governo Central. 

– Falando na questão do uso da língua portuguesa nos órgãos legislativo, executivo e judicial, em linha com o que está na Lei Básica, há pessoas que dizem que o uso tem diminuído.

L.A. – Não concordo.  Acho que há mais luso-falantes hoje que no tempo da Administração Portuguesa. Há mais luso-falantes hoje que no período de transição. Hoje em dia tenho no meu escritório muitos chineses, até provenientes da República Popular da China, que falam português. Todos os anos quando vou às sessões anuais das Duas Reuniões em Pequim tenho encontrado novas pessoas, sobretudo jornalistas jovens, a falarem muito bem português, uns com sotaque brasileiro, outros nem tanto. Portanto, quer no interior da China, quer aqui em Macau, o interesse está em crescendo. 

Não é uma vitória garantida, mas de certeza que derrota não é. Pode ser um processo mais prolongado, mas, sobretudo – não sou um especialista em linguística – creio que isto tem muito a ver com a utilidade da língua em termos económicos. 

– Há aqui um casamento entre o processo de desenvolvimento de integração regional da Grande Baía e o papel de Macau na ligação com os Países de Língua Portuguesa. Esta é a principal mais-valia de Macau?

L.A. – Sem dúvida é muito importante. Tirando os casinos e a fachada das Ruínas de São Paulo e outros monumentos que podem atrair turísticas, Macau, em termos de potencialidade económica e de interesse, é muito pequeno. Macau só sobrevive se houver sempre sangue novo. Macau sempre dependeu de pessoas que vêm de fora. Macau tem de captar as pessoas de fora. Tem de renovar, constantemente, o seu sangue. E para obter o interesse por Macau tem de haver motivos de atração em termos de investimento também. Macau integrar-se-á cada vez mais nesta região do Sul da China. 

– Ainda no que diz respeito ao processo de integração regional, referiu em Pequim, em março, que poder-se-ia olhar para a União Europeia como exemplo em que diferentes jurisdições cooperam num processo de integração económica. Acredita que isso é possível? 

L.A. – Há aqui dois aspetos. Em primeiro lugar, as pessoas do sistema socialista pensam e com legitimidade que o sistema deles é o melhor. O conceito político é o socialismo com caraterísticas chinesas. Uma das realidades chinesas é, efetivamente, haver duas regiões administrativas especiais. O sistema jurídico da China continental também está a evoluir. É nessa evolução que os inputs que podem provir de Hong Kong e de Macau poderão ser muito benéficos para a evolução do sistema jurídico chinês, aplicado nesta região da China. É nesta simbiose que eu vejo que é o grande futuro e a grande aposta de todos nós, juristas e não juristas. É um contributo muito significativo. E este processo de pujança económica desta região do Sul da China pode ser um polo atrativo, um íman muito importante para uma futura não muito longínqua unificação, ou antes da unificação, uma maior aproximação destas três regiões para que seja comum, em paralelo com a experiência feita na União Europeia. 

– Mas aí surge a questão da descaraterização da identidade, receio expresso muito em Hong Kong mas também um pouco aqui em Macau.

L.A. – E qual é o problema se dessa descaraterização surgir algo de bom para todos nós? O que é algo de bom para todos nós? É a garantia das suas liberdades, dos seus direitos e ter uma prosperidade económica para todas as famílias, para todos os indivíduos que vivem não só em Macau e Hong Kong, mas também em toda esta região da China. Porque às vezes temos uma presunção que nós somos superiores. Também cheguei a comungar desse tipo de mentalidade, mas estou cada vez mais consciente de que essa mentalidade deve ser corrigida. 

– Estamos a um ano e meio da mudança de Chefe do Executivo. Quem gostaria de ver substituir Chui Sai On? 

L.A. – Gostaria que fosse alguém que conhecesse bem a economia de Macau. 

Tivemos muita sorte com os dois mandatos do Dr. Edmund Ho, que relançou a economia de Macau, abriu portas para novas apostas, para novos investidores. O atual Chefe do Executivo desempenhou um bom papel de garantir a estabilidade e de dar proteção social a todos. Mas é altura, 10 anos depois, de termos uma nova aposta económica, sobretudo tendo em atenção a integração de Macau na economia da região do Sul da China. Quando falamos da Grande Baía, na necessidade de Macau interagir cada vez mais com esta região, obviamente que não bastam discussões filosóficas, históricas, mas sobretudo alguém que conheça as potencialidades económicas de Macau, desta região do globo. Nada melhor que alguém que perceba disto ou que tenha condições para perceber.

– Ou seja posso depreender das suas palavras que esse tipo de perfil encaixa-se mais em alguém com um background empresarial como desde logo o Secretário para a Economia e Finanças,  Lionel Leong, ou o Presidente da Assembleia Legislativa, Ho Iat Seng?

L.A. – Ambos têm obviamente.

– E não tanto o Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak?

L.A. – Dentro deste meu quadro de pensamento, acho que alguém que perceba e que consiga ser o timoneiro de Macau para este novo ciclo económico, para que este salto qualitativo de Macau não se cinja a casinos e coisas conexas. Acho que o meu amigo Wong Sio Chak, tenho um grande apreço por ele. Sou presidente da Comissão Fiscalizadora das Forças de Segurança e tenho contactos muito assíduos com ele. É uma pessoa extremamente competente, é um bom jurista. Poderá ser um bom Chefe do Executivo sem dúvida. Poderá ter capacidade para aprender com facilidade e rapidez os requisitos da economia que há pouco enunciei. Ninguém está excluído dentro deste meu quadro de pensamento. 

– Tem 61 anos. Terá 62 na altura da formação do próximo Governo. Coloca de parte a hipótese de vir a assumir um cargo como por exemplo de Secretário, uma função política, além daquela que já exerce como membro do Conselho Executivo? 

L.A. – Nunca coloquei esta hipótese em consideração. Nunca ambicionei exercer um cargo executivo. Gostaria de facto de poder continuar a desempenar funções de aconselhamento, sendo ou não sendo membro do Conselho Executivo, de a minha palavra ser ouvida. Este é o meu desiderato último.

 – E em termos de intervenção cívica, tem participado em debates e dado um contributo no espaço público. Que tipo de participação planeia ter no futuro?

L.A. – Estou muito atento à questão dos direitos, liberdades e garantias. Vamos ver como Macau vai evoluir, que projetos irão ser apresentados. Certamente que não me pouparei a dedicar-me a estes assuntos para bem servir a população de Macau. Gostaria também de participar num movimento de ressurgimento de ideias, de ressurgimento de algum movimento para que as vozes das nossas comunidades portuguesa e macaense continuem a ser ouvidas e melhor ouvidas.

E isso pode ter que forma?

L.A. – Não sei. Tenho de falar com os amigos, com as pessoas que acham que Macau está numa fase de desenvolvimento em que a nossa participação, tal como a tivemos antes da transferência na década de 1990, seja uma participação muito ativa. Vamos ver se o contacto assim o exige para que Macau tenha um patamar de desenvolvimento e que nós possamos contribuir enquanto comunidade. Certamente que não virarei as costas a isso. 

José Carlos Matias  18.05.2018

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