Acordo muda eleição de dirigentes em Moçambique

por Arsenio Reis

O Presidente de Moçambique apresentou o acordo sobre descentralização como uma grande boa nova. Uma novidade com direito a discurso no espaço nobre da residência presidencial (Ponta Vermelha), em Maputo, transmitido em direto pelas televisões e rádios do país. Dhlakama, a partir da Gorongosa, confirmou e aplaudiu. Mas há outras resistências e desconfiança. 

Filipe Nyusi tomou a palavra a 7 de fevereiro para anunciar que ia remeter à Assembleia da República uma proposta de revisão pontual da Constituição após consensos alcançados nas negociações de paz com o líder da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), Afonso Dhlakama. Os confrontos militares de 2015-16 já lá vão. Agora são recorrentes os encontros entre ambos, na serra da Gorongosa, onde Dhlakama continua a morar. Assim como são recorrentes as fotos de ambos – à conversa, com apertos de mão – a negociar a paz. E, desta vez, a grande novidade é que a proposta de revisão da Constituição prevê que os governadores de província e os administradores de distrito deixem de ser indicados pelo poder central, para passarem a ser uma escolha de quem ganhar as eleições para as assembleias provinciais e distritais. Uma mudança que vai ao encontro da aspiração da Renamo, de governar nas regiões onde reclamava ter vencido as eleições de 2014. 

Até agora, eram conhecidas negociações sobre a forma de eleger governadores provinciais. Já a mudança ao nível de distritos foi uma surpresa, porque não se esperava que a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), no poder, os incluísse no pacote de descentralização – embora a alteração ao nível distrital só entre em vigor nas eleições gerais de 2024.

Este acordo propõe ainda que ao nível autárquico seja seguido o mesmo modelo, ou seja, que o presidente de cada município passe também a emanar da respetiva assembleia, em vez de ser sufragado diretamente – e este é um dos pontos que está na origem de maiores discussões. Resumindo: a cada nível da administração, os dirigentes passarão a responder perante as respetivas assembleias – que já eram eleitas nas urnas, mas ganharão assim nova relevância.

Em contrapartida à dispersão do poder, Filipe Nyusi anunciou que vai passar a existir um secretário de Estado para cada província – nomeado pelo Presidente da República -, para assegurar a realização “das funções exclusivas de soberania de Estado que não são objeto do processo de descentralização”. E que são muitas – ao ponto de haver quem questione que competências terão os novos governadores e administradores eleitos. Fora da descentralização ficam matérias relacionadas com “a gestão de recursos minerais e energia, bem como dos recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas interiores e no mar”. O mesmo se aplica à criação e alteração de impostos, definição da organização do território, defesa nacional, segurança e ordem pública, fiscalização das fronteiras, emissão de moeda e relações diplomáticas, apontou o Presidente.

Filipe Nyusi classificou o consenso alcançado acerca da descentralização como “um passo gigantesco” para o processo de paz em Moçambique. “São passos que exigem a coragem, não de duas pessoas, mas sim a coragem de exercer mudanças, por parte dos moçambicanos”, sublinhou. 

Na mesma sintonia, o presidente da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), Afonso Dhlakama, reagiu ao anúncio oficial de Nyusi com entrevistas a partir da Gorongosa. “Acho que avançámos muito. Ninguém acredita que havemos chegado onde chegámos. Outras coisas poderão ser corrigidas no futuro, mas de certeza que Moçambique vai ser diferente do que é hoje”, referiu.

Então e o povo?

O filósofo moçambicano e reitor universitário, Severino Ngoenha, considera que a proposta de revisão da Constituição é uma “acomodação da vontade de duas pessoas”. “Ambas tomam uma decisão. A decisão é lida em comunicação pública e só depois enviada ao parlamento. Afinal, o que é realmente o parlamento? Não é o primeiro lugar de debate público?”, questiona o académico.

“Este acordo é estruturalmente fraco porque ele compreende a dinâmica de dois partidos e deixa de lado aquilo que é a vontade popular”, reiterou Severino Ngoenha, acrescentando que se cria um bipartidarismo, com os outros partidos políticos moçambicanos a passar a peças de figurino. Ao analisar o conteúdo da proposta de revisão da Constituição, Ngoenha entende que o maior vencedor desta reforma será o partido, enquanto instituição do sistema político, na medida em que o esquema que foi montado favorece o surgimento de grandes “aparatos partidocráticos”.

“A descentralização, que se propunha, recentrou o poder. O partido político vai ser o novo monarca”, sublinhou o filósofo, que acrescenta que retirar o direito de voto direto, nas eleições dos presidentes dos municípios, revela que a política está a fugir dos problemas reais do povo.

“É um acordo para enganar o povo”, que não foi ouvido, declarou Daviz Simango, presidente do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), terceiro partido do parlamento. O consenso, refere, vai trazer a bipolarização do poder, tendo em conta que favorece apenas a Frelimo e a Renamo. “Este acordo vai criar condições para que não haja novas vozes no âmbito do processo de governação de Moçambique”, vaticina. Por outro lado, teme que a nova figura do secretário de Estado provincial acabe por concentrar as competências relevantes.

Os partidos extraparlamentares alinham-se pelos mesmos argumentos. “Era importante que as duas partes estivessem atentas às contribuições que têm sido feitas desde o início deste processo, tanto pelos partidos políticos como pela sociedade civil”, refere Cornélio Quivela, presidente do Partido Humanitário de Moçambique (Pahumo). “Esta decisão acomoda a vontade de algumas pessoas, mas não a vontade da maioria. Moçambique tem cerca de 28 milhões de habitantes”, afirmou o líder do Partido Ecologista, João Massango, que espera que os moçambicanos pressionem o poder para que questões de fundo da Constituição sejam adequadas à verdadeira vontade do povo. A proposta de revisão da Constituição já está a ser analisada por uma comissão parlamentar, que promete pronunciar-se nos primeiros dias de março.

Referendo? Sim ou não?

A proposta de revisão da Constituição gerou um outro debate em Moçambique, com organizações não-governamentais e o MDM a defenderem a necessidade de um referendo. Justificam-no por a Constituição dizer ser “obrigatoriamente sujeitas a referendo” alterações “ao sufrágio universal, direto, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares eletivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local”. Logo, deixando de haver eleição direta de presidentes de município, terá de haver referendo.

Para Severino Ngoenha, “um grande referendo ou um grande debate devia ter sido feito a priori para uma alteração da Constituição que não fosse a acomodação do partido no poder e da sua oposição”. Agora, tudo está condicionado, refere, inclusivamente a opinião pública, que não quererá colocar em risco uma via aberta para a paz.

O jurista moçambicano Ericino de Salema afasta a necessidade de uma consulta popular. “Do ponto de vista técnico-jurídico, pode ser feita a revisão sem um referendo”, sublinha, argumentando que a Constituição de 1990, que introduziu a possibilidade de referendo, “não foi aprovada por uma assembleia constituinte originária”. “Estou simplesmente a dizer que há várias modalidades de interpretação da lei: uma delas é a interpretação sistemática e é esta que pode ser usada”, afirmou o jurista.

João Nhampossa, representante da Ordem dos Advogados de Moçambique, defende o contrário: por as alterações que se propõem mexerem com a liberdade política de cada cidadão, é necessário um referendo. “Se os cidadãos agora já não podem votar diretamente no presidente do seu município, estamos numa situação de limitação da sua liberdade política, o que toca com os direitos fundamentais das pessoas”, observa o advogado, que sugere um estudo aprofundado sobre a matéria. 

Luís Fonseca-Exclusivo Lusa/Plataforma Macau  02.03.2018

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