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Chumbar é um direito

Chegar ao último ano da licenciatura de comunicação social e não saber quem é o primeiro-ministro ou o Presidente da República já é grave. Não saber, de todo, como funciona a democracia, como se elegem deputados ou executivos camarários, é preocupante. Não saber escrever português é particularmente dramático.

Nada disto é ficção. No ensino superior, apanha-se de tudo, incluindo alunos que sabem tudo isto – e muito mais – e, pasmem–se…, até sabem escrever português. Mas a esmagadora maioria chega ao último ano do curso superior claramente impreparada. Sem o básico, que é saber escrever uma frase com sujeito e predicado, de preferência sem uma vírgula no meio. E isto já para não falar nos erros ortográficos.

Quem já corrigiu frequências ou exames acaba, normalmente, a fazer-se as mesmas perguntas: “Como é que estes alunos chegaram aqui? Quem foram os professores e, já agora, os pais? Quem é que os foi passando, ano após ano?” A verdade é que chegaram até ali, ao último ano de uma licenciatura, quando, na verdade, alguns ainda deviam estar a repetir a quarta classe. E não é, seguramente, numa cadeira – ou em duas ou três – que eles vão aprender tudo o que deviam ter aprendido atrás.

Todos os anos o país vibra com os rankings das escolas. Qual foi a melhor? Que escola teve menos chumbos? Onde se verificou a melhor média nos exames nacionais? Como se estas perguntas respondessem ao mais importante em qualquer sistema de ensino: que educação estamos a dar aos nossos alunos? Eles estão, de facto, a aprender ou estão apenas a cumprir anos de escolaridade?

A resposta a estas perguntas não é linear e chega, normalmente, mais tarde. Nem todos os alunos saem das faculdades como uns ignorantes graduados. Muitos saem, de facto, bem preparados e, não por acaso, muitas empresas nacionais e estrangeiras continuam a dizer que Portugal tem quadros altamente qualificados. Em algumas áreas, se pecamos por alguma coisa, é por escassez, por esses quadros não serem em número suficiente. Mas não é menos verdade que a taxa de desemprego jovem continua assustadoramente alta. Que muitos saem das faculdades, fazem o estágio curricular e acabam a vender roupa e sapatos nos shoppings. Que o investimento feito na formação de milhares de jovens é praticamente todo deitado ao lixo, sempre que o curso que tiraram não lhes serve de nada, ou eles não servem para o curso que tiraram. Que sistema de educação é este que falha tantas vezes na forma como ensina e que não tem a mínima preocupação em adaptar-se às necessidades do mercado de trabalho?

Mais uma vez, a resposta tem múltiplas variantes. A começar, muitas vezes, pelos pais, que são os primeiros responsáveis pela educação dos filhos, mas que, tantas vezes, optam por entregar essa responsabilidade – de ensinar e educar – aos professores. Para eles – alguns, não todos -, a culpa do insucesso dos filhos será sempre dos professores e da escola, nunca dos filhos e, muito menos, dos pais.

E não é que os professores – alguns, não todos – não tenham também grandes responsabilidades. Sobretudo aqueles que o são por um óbvio erro de casting, sem a menor vocação ou profissionalismo. “Sabes a burocracia que implica chumbar um aluno?”, já me confidenciaram alguns. Pois, é uma chatice ter de chumbar um aluno. O melhor mesmo é passá–lo e livrarmo-nos do “problema”.

E eis-nos chegados ao verdadeiro problema: o Estado. Que na sua imensa burocracia, leis, teorias educativas, cortes e congelamentos, reformas e contrarreformas foi provocando, ao longo dos anos, um enorme desgaste em toda a comunidade educativa. O Estado – representado por este e por todos os anteriores governos – que nunca deixou de ceder à tentação das estatísticas, por efémeras que sejam, dos rankings, das médias e das taxas de reprovação. As vítimas são, em primeira instância, os professores, sobre os quais recai uma pressão muitas vezes impossível de suportar. E, mais grave ainda, os alunos, que não chumbam na escola, mas acabam tantas vezes a chumbar na vida.

Sim, eu sei que há uns quantos teóricos que defendem que um aluno não deve chumbar. Eu sei que não faltam pedagogos por aí que consideram que reprovar um aluno pode trazer consequências graves ao nível da autoestima. Estes teóricos dispensam-se, no entanto, de explicar duas coisas: as consequências futuras que advêm de passar sem saber e, não menos importante, que ninguém está verdadeiramente preparado para a vida se não estiver preparado para lidar com o fracasso. Chumbar – ou reprovar, que é capaz de ser uma palavra mais pedagógica – é um direito que todos os alunos devem ter, sempre que não sabem o suficiente para passarem. E é um direito tão válido quanto o direito a aprender, ao conhecimento, à educação. Porque sem o direito a chumbar o direito a passar perde significado, importância, relevância.

Rigor e exigência: eis um bom ranking para qualquer governo. Com mais ou menos carga horária, com mais ou menos peso na mochila, rigor e exigência com os alunos, com os professores, com as escolas e, já agora, com o exemplo do próprio Estado. Rigor e exigência poderiam ser uma boa base do sistema educativo. Mas isso rende poucos votos, não é? E é capaz de ser uma chatice política. Pronto, vamos passar toda a gente. 

Anselmo Crespo  09.02.2018

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