Os desalojados da nova era

por Arsenio Reis

A maioria do comércio da Travessa do Soriano, na zona do Senado, foi obrigada a mudar de sítio depois do proprietário ter decidido vender as lojas. As mercearias Tung Fong e Tin Une são mais dois dos muitos negócios antigos e característicos que se veem obrigados a abandonar o centro da cidade.

Um a um vão desaparecendo da zona histórica. Os negócios que caracterizaram o centro da cidade durante anos vão, lentamente, dando lugar a mais uma joalharia com peças a preços milionários, a uma loja de roupa com descontos apetecíveis ou a um ‘franchising’ que se encontra em qualquer outra parte do mundo. As mercearias Tung Fong e Tin Une foram duas das mais recentes vítimas das mudanças e investimentos na zona do Largo do Senado. Fecharam as portas na Travessa do Soriano, onde estavam há décadas. Eram vizinhas e, agora, está cada uma para seu lado porque o proprietário decidiu vender as lojas.

Fomos à procura da mercearia Tin Une para saber o que tinha motivado a mudança para a Rua Camilo Pessanha. Não batemos com o nariz na porta, mas o dono – de óculos na ponta nariz e atarefado como sempre entre os sacos de cereais, os caixotes de fruta e as caixas com papo secos – recusou-nos a entrevista e limitou-se a dizer, resignado, que “aceitava a mudança e a realidade”. Insistimos. Mas em vão. Pediu desculpa e disse que preferia não falar.

Seguimos rumo à Mercearia Tung Fong, na esperança de que desta vez quisessem partilhar connosco as angústias de quem é obrigado a deixar um espaço onde trabalha há décadas. Calvin Sio, dono da Mercearia Tung Fong, abriu-nos o sorriso e a porta (da loja e de casa). Partilhou as dificuldades que o pequeno comércio enfrenta atualmente, e ainda nos apresentou o antigo e primeiro Tin Une. Calvin Sio e Shiu Tun Lee são amigos há 60 anos. Um ficou em Macau, o outro partiu para a Austrália antes da transferência de administração. Todos os anos se juntam, quando Shiu Tun Lee volta a Macau de visita. Este ano, pela primeira vez depois de décadas, encontraram-se na zona do Kiang Wu, em vez do Senado, onde agora está a Mercearia Tung Fong. 

“Só mantive a mercearia por uma questão afetiva. Não é um negócio lucrativo. Todos os meus amigos me dizem para me reformar, mas quero continuar a fazer alguma coisa”, confessa Calvin Sio, dono da mercearia Tung Fong, que herdou do pai. 

O negócio de família abriu em 1947 e permaneceu no número 6, da Travessa do Soriano, na zona do Mercado de São Domingos, durante 70 anos. Em março de 2017, Sio foi obrigado a abandonar o espaço porque o proprietário quis vender a loja. Agora está no número 8, da Estrada de Coelho Amaral. Conta que só manteve as portas abertas porque transferiu o negócio para a casa de família onde também vive. Os frutos secos, os cereais dentro dos sacos grandes abertos, a carne congelada e os enlatados estão agora espalhados pelo rés-do-chão duma moradia antiga, de arquitetura colonial, para os lados do Kiang Wu. 

“Hoje em dia, as pessoas preferem ir ao supermercado. A minha sorte é que o meu pai me deixou esta casa. Se arrendasse uma loja deste tamanho, não aguentava”, desabafa Sio. “Não sei se o Governo tem apoios para lojistas. Sei de um rapaz novo que pediu um empréstimo para abrir um negócio. Eu? Nem quero pensar nisso. E se depois não conseguisse pagar?”

Em tempos, há cerca de 40 anos, Sio ainda tentou comprar o espaço onde estava no Senado, mas o proprietário recusou porque só estava disposto a fazer negócio com alguém que comprasse todas lojas que tinha na zona. A venda acabou por acontecer agora e obrigou a maioria do comércio da travessa a mudar de sítio. À semelhança das mercearias Tung Fong e Tin Une, também o supermercado Dah Chong Hong, mais conhecido como Mamacare, vai mudar de espaço. Ainda não sabe onde vai ser a nova morada, mas é já no fim do mês que fecha as portas no Senado. Nenhum dos comerciantes sabe o que vai acontecer na zona. 

O PLATAFORMA tentou saber junto do Governo quem era o antigo proprietário, quem é o novo investidor e o que vai acontecer no espaço, mas sem sucesso até ao fecho da edição. Também procurámos saber quantos negócios antigos e característicos foram obrigados a deslocar-se do centro da cidade devido ao preço das rendas, mas ficámos igualmente sem resposta. No entanto, em resposta ao PLATAFORMA, os Serviços de Economia recordam que foi assinado o acordo de Cooperação do “Grupo de Apoio a Lojas Antigas Típicas” com a Macau Chain Stores and Franchise Association. O projeto tem como medidas previstas a identificação das lojas, a atribuição de apoio financeiro; e ajudar na divulgação e promoção das marcas no Interior da China, estrangeiro e em Macau, entre outras. 

“O negócio diminuiu desde que estou aqui, mas talvez seja melhor. Assim não estou tão ocupado”, ironiza Calvin Sio. Aos 71 anos, o comerciante diz não pensar muito nas dificuldades porque já não tem intenções de fazer dinheiro. O negócio passou a ser só uma forma de se manter ocupado. 

“Já não preciso de apoiar a família. Os meus filhos já são adultos. Enquanto houver negócio, vai-se fazendo. É melhor do que estar sem fazer nada. Mas pensando nas dificuldades, é verdade que agora  não é fácil manter um negócio deste género”, refere, e dá como exemplos as rendas altas e o obstáculo que é encontrar mão-de-obra. 

Na loja, que também tem serviço de entregas, trabalham a mulher mais oito empregados e os irmãos, que ajudam nos contactos com os fornecedores de Hong Kong, onde vivem e de onde Sio importa grande parte dos produtos. Na altura do pai, era diferente. Os produtos vinham sobretudo do Continente, através de fornecedores como a Nam Kwong e a Companhia de Produtos e Produções Especiais da China, as únicas empresas com autorização para importar naquele tempo. “A minha vida é praticamente igual. Antes ganhava 100 patacas. Agora ganho mil, mas os preços subiram”. E desabafa: “Gosto mais da Macau [cidade] de antes. As pessoas tinham menos dinheiro, mas era melhor”.

Recorda com nostalgia os tempos antes da transição e do jogo ter começado a dominar a economia do território, mas não em todos os aspetos. Lembra-se de sentir que havia “pressão” do Governo, na altura português. Uma sensação que, diz, não mudou com a transferência de soberania para a China. “Não confiávamos no Governo chinês tendo em conta toda a história da China, e momentos como a Revolução Cultural. Ainda que agora esteja tudo bem, sentimos que as coisas podem voltar a acontecer”, remata. 

Outros tempos

A conversa ficou por ali e descemos para a mercearia. Enquanto tirávamos fotografias do novo espaço, Calvin Sio ria e falava com um amigo. Estávamos de saída quando nos diz: “Se querem falar de negócios históricos, é com este senhor”. 

Numa conversa que misturou inglês, cantonês e português, ficámos a perceber que estávamos a falar com o dono da primeira Tin Une.  Voltámos ao primeiro andar para saber a história da mercearia que deu nome à atual. 

O negócio começou com o avô de Shiu Tun Lee, que abriu uma mercearia nos anos 40. Foi passando de geração em geração e, depois da era do pai, chegou às mãos de Shiu, já como comércio de carnes congeladas. Foi assim até 1989, quando Shiu e a família decidiram abandonar Macau e rumar à Austrália. 

“Já tínhamos o negócio há muitos anos. Naquela altura, também tinham começado as negociações sino-portuguesas por causa da transferência de soberania de Macau para a China. A nossa família pensou que era melhor sair de Macau por algum tempo e esperar para ver qual seria a situação depois da transição”. Até hoje. “Não tínhamos medo. Mas era uma fase de incerteza e não podíamos prever como Macau ia desenvolver-se”, recorda Shiu.

O merceeiro reformou-se e por lá ficou, em Camberra. “Naquela altura, Macau era mais calma. Havia mais estabilidade nos negócios. Agora, os custos são mais altos. Os preços subiram por causa das rendas e, por isso, é difícil manter um negócio se não se tiver um espaço próprio como nós tínhamos. Os salários subiram, mas não acompanharam o aumento dos preços. No passado, se uma pessoa ganhasse mil patacas, era um salário muito alto. Agora, as pessoas têm salários de mais de dez mil patacas e não são considerados salários altos”, indigna-se.

Ainda assim, Shiu considera a mudança pós-1999 – quando Macau passou a estar sob administração chinesa – boa. Acha que as pessoas estão satisfeitas com o desenvolvimento da cidade e não partilha do receio do amigo. “Como nós somos chineses, claro que a transferência de Macau para a China foi uma coisa boa. A China retomou a soberania. Não tenho saudades da administração portuguesa”, declara.

Shiu ressalva, no entanto, que não havia descriminação e que era raro haver hostilidade entre as principais comunidades – portuguesa e chinesa – que frequentavam a loja. O negócio acabou quando saiu de Macau. O espaço onde estava, no número 3B da Travessa do Soriano, é hoje mais uma loja da cadeia de eletrodomésticos e produtos eletrónicos Fortress, mas o nome resistiu. “O dono do Tin Une foi empregado o meu pai que lhe deixou o nome da loja quando fechámos”, conta. 

Sou Hei Lam

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