Segundo sistema à prova

por Arsenio Reis

A suspensão do mandato do deputado Sulu Sou é mais um sinal de que o segundo sistema está em perigo. Juristas consideram que o processo penal que envolve o ativista está a ser um teste à separação e independência de poderes.

Dia 4 de dezembro ficou na História de Macau. Foi a primeira vez que o mandato de um deputado foi suspenso. Juristas ouvidos pelo Plataforma salientam a dimensão política do caso que envolve Sulu Sou como arguido pelo crime de desobediência qualificada. A decisão da Assembleia Legislativa (AL) de suspender o mandato do jovem democrata, dizem, foi mais um sinal de uma morte anunciada do segundo sistema, que garante a autonomia da região face à China Continental. Perdida a batalha no hemiciclo, resta saber o que vai acontecer a Sulu Sou nos tribunais a partir da próxima terça-feira, quando começa a ser julgado.

O início 

O processo penal contra Sulu Sou teve início com o protesto de 15 de maio de 2016, organizado pela Associação Novo Macau (ANM) contra o subsídio de 100 milhões de patacas atribuído pela Fundação Macau à Universidade de Jinan. A associação defendia haver conflito de interesses por o Chefe do Executivo presidir ao Conselho de Curadores da Fundação Macau e ser vice-presidente do Conselho Geral da universidade da China. Sulu Sou e Scott Chiang, na altura vice-presidente e presidente da associação respetivamente, foram acusados do crime de desobediência qualificada por, alegadamente, terem desrespeitado as indicações da polícia sobre o trajeto da manifestação.

“Não conheço o processo-crime e não me vou pronunciar se [Sulu Sou] está a ser bem ou mal acusado. Conheço sim a lei. Quer o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, por vezes dizendo que a via já está ocupada por outras manifestações, quer a polícia tomando medidas restritivas que quase que impossibilitam o objetivo da manifestação, estão a fazer uma aplicação restritiva da lei. Está a ser aplicada de maneira a que constrange os direitos de manifestação e reunião, e não foi com esse objetivo que foi criada”, critica o jurista Marques da Silva. 

Já o jurista António Katchi defende que a polícia não podia ter ordenado aos manifestantes que ocupassem só o passeio já que desfilar pela estrada faz parte do “conteúdo essencial” do direito de manifestação. “Sulu Sou, Scott Chiang e os manifestantes que os seguiam não estavam juridicamente vinculados a acatar a ordem policial de permanecerem confinados ao passeio. Se a ordem era ilegítima e inclusivamente nula, o seu incumprimento não poderia constituir crime de desobediência. Ainda assim, obedeceram.” 

Marques da Silva acrescenta: “De ressalvar, e é por isso que digo que tudo isto é político, que também é política a interpretação restritiva que está a ser dada à lei. Tudo agora é crime de desobediência.”

Katchi refere que o Direito Penal contempla determinados tipos de crime que são “permeáveis” à instrumentalização política. “Em Macau, o principal é, precisamente, o crime de desobediência.”

Durante as Linhas de Ação Governativa, o secretário para a Segurança revelou que, desde 2014, houve 12 casos de acusações pelo crime de desobediência qualificada durante manifestações, envolvendo 47 pessoas. Os números foram divulgados por Wong Sio Chak na sequência das críticas apontadas à polícia pela forma como atuou no caso Sulu Sou.  

O Plataforma procurou saber quantos protestos houve desde essa altura, quantos implicaram queixas das autoridades contra manifestantes, as causas das queixas e quantas das 47 pessoas foram condenadas. Nenhuma das perguntas foi respondida até ao fecho da edição. 

Sabe-se que o protesto dos moradores do Sin Fong Garden foi um dos resultou em acusação por desobediência qualificada, em 2014, por ter ocupado a via pública. Na altura, o Tribunal Judicial de Base condenou sete condóminos a penas de multa de nove mil patacas.

Sulu fora

Chega setembro de 2017. Sulu Sou é um dos candidatos às legislativas e é eleito com cerca de nove mil votos. É deputado aos 26 anos, o mais jovem a sentar-se na assembleia até hoje, e aumenta a representação do campo pró-democrata no hemiciclo. Em novembro, a AL recebe um ofício do Tribunal Judicial de Base a dar conta da acusação ao jovem ativista. O tribunal pedia à assembleia para decidir “se é suspenso o mandato do deputado, bem como se é autorizada a sua intervenção em juízo”. 

Surge o debate se devia ser aplicado o artigo 27º do Estatuto dos Deputados – que força o plenário a votar a suspensão do mandato em lugar de ser a mesa da assembleia a decidir, quando há um procedimento penal contra o deputado; ou, o 30º – que diz que a autorização para os deputados irem a tribunal, mesmo como arguidos, depende apenas da mesa, sem haver suspensão de mandato. O presidente da AL, Ho Iat Seng, decidiu tratar o caso de Sulu Sou ao abrigo do artigo 27º do Estatuto. 

“Entendo que foi corretamente aplicada a norma do artigo 27º do Estatuto visto que já havia uma acusação e a AL recebeu a comunicação do juiz do processo”, considera o advogado Sérgio de Almeida Correia.

Marques da Silva clarifica que a escolha depende da fase em que está o processo. “O artigo 27º do Estatuto dos Deputados está bem aplicado. É irrelevante se não era deputado na altura em que foi acusado. É chamado para ser julgado e aí tem de ser o artigo 27º.” 

A questão de não ser deputado quando as autoridades avançaram com o processo penal foi uma das questões levantadas por Sulu Sou, que acabou por ser excluída do parecer elaborado pela Comissão de Regimento e Mandatos.

A mesma reuniu-se, como manda o Regulamento da AL, e optou por não se pronunciar sobre se o mandato de Sulu Sou devia ser suspenso. Podia tê-lo feito, mas escudou-se num parecer técnico sem, aparentemente, emitir opinião. Marques da Silva diz que há uma mensagem clara no parecer. “Indicia que não deviam suspender o mandato do deputado.” 

O jurista fundamenta com as partes do documento em que se lê que o regime de imunidades tem como pré-finalidade “preservar a independência dos deputados perante os outros órgãos” (…), e de que “a suspensão do mandato releva não só para o deputado em causa, mas também e essencialmente para a instituição da Assembleia Legislativa (…)”. 

A comissão, insiste Marques da Silva, reforça a mensagem com mais uma ressalva noutra parte do documento em que se lê: “A não-suspensão do mandato do deputado não significa que o deputado fique impune e que possa cometer um crime sem ficar sujeito à justiça. A não-suspensão do mandato apenas implica que o processo criminal fica suspenso, isto é, não haverá lugar a prescrição do procedimento penal em causa. O deputado será julgado pelo crime de que é acusado uma vez que finde o seu mandato”.

“Isto indicia claramente, para quem quiser ler, que a comissão se pronunciou para a não-suspensão do mandato.” O jurista entende que, subtilmente, a comissão quis obrigar os deputados a assumir a responsabilidade de decidir, deixando o aviso de que, se optassem pela suspensão, estariam “a ferir a dignidade da assembleia”. “A comissão lava as mãos como Pilatos e diz que decidam o que quiserem, mas que estão alertados.”

E a assembleia decidiu. Entre 32 deputados, 28 votaram a favor da suspensão do mandato. O voto era secreto, mas os deputados Ng Kuok Cheong, Au Kam San e Pereira Coutinho assumiram ter votado contra. Sulu Sou disse que Agnés Lam também o apoiou. O jovem ativista não pôde votar, ao abrigo do artigo 34º do Estatuto dos Deputados que os impede de “participar na discussão e votação de matérias em que detenham interesse, patrimonial ou não, que seja direto, pessoal e imediato”. Mais uma vez a decisão é polémica. Marques da Silva entende que está correta já que Sulu Sou “tinha um interesse pessoal e imediato que era o de continuar a ser deputado”.

Sérgio de Almeida Correia contrapõe que Sulu Sou “podia e devia ter sido ouvido” e que “nenhuma norma o impedia de votar”.

“O interesse que era colocado em causa com a suspensão não era um interesse dele próprio, mas sim um interesse dos eleitores. O interesse destes na representação e que, com a suspensão do deputado ficam sem representação. O legislador quis acautelar situações de interesse pessoal do deputado, não situações de interesse público. O interesse dos eleitores no cumprimento do mandato e na sua representação durante toda a legislatura é inequivocamente um interesse público”, realça.

O advogado salienta ainda que, havendo uma situação de conflito de interesses, deveria ter sido declarada pelos deputados até ao início da discussão no plenário e que na declaração deviam estar as razões que justificassem o conflito. O que não aconteceu.

“Também quanto a esta matéria, o plenário da AL, com a anuência do seu presidente, atropelou as estatuições legais e violou a lei de forma clamorosa.”

O Plataforma procurou saber junto da assembleia quantos casos houve de pedidos para deputados irem a tribunal, que deputados estavam envolvidos, os motivos e como decorreu o processo. Também não obtivemos respostas até ao fecho da edição. Procurámos também falar com Anabela Ritchie, presidente da assembleia em 1997 – a única vez que o plenário se pronunciou sobre a suspensão de um mandato – que preferiu não falar. Na altura, o plenário votou contra a suspensão do deputado Chan Kai Kit, envolvido num processo-crime relacionado com contratação de trabalhadores ilegais.

Próximos capítulos

Terça-feira começa o julgamento de Sulu Sou que, entre recursos do acusado e do Ministério Público, pode demorar anos e terminar já depois do fim da legislatura, em 2021. Há três cenários possíveis. Sulu Sou é absolvido e volta ao hemiciclo, caso ainda esteja a decorrer a legislatura para a qual foi eleito; é condenado em pena de multa ou é condenado a pena de prisão inferior a 30 dias, e em ambos os casos não perde o mandato; ou, finalmente, é condenado a uma pena de prisão superior a 30 dias que poderá implicar a perda de mandato, caso a assembleia assim o decida. Antes do plenário votar, a Comissão de Regimento e Mandatos deve pronunciar-se e recomendar se o mandato deve ser declarado perdido ou se o deputado deve retomar funções e cumprir o que falta até ao fim. Neste caso, e segundo o Estatuto dos Deputados, o “deputado visado tem o direito de defesa perante a Comissão de Regimento e Mandatos e perante o Plenário, mantendo-se em funções até à deliberação definitiva deste.”

Marques da Silva recorda que, face à Lei Básica, os tribunais são independentes. “Quero acreditar que vão julgar de forma independente e consoante as provas.” E levanta uma questão, que prefere não responder, sobre que tipo de pena contará para decidir se há perda de mandato. “São 30 dias de prisão efetiva ou também conta a pena suspensa? Há uma prática de que as penas de curta duração normalmente não são efetivas, são suspensas.”

Caso o plenário decida pela perda de mandato, o lugar de Sulu Sou deve ser ocupado num prazo de 180 dias, através de eleições suplementares tendo em conta que se trata de um deputado eleito de forma direta. 

Sérgio de Almeida Correia alerta para as consequências do último cenário. “Dezenas de milhares de eleitores que perderam o seu representante poderão não voltar a ter representação na AL até ao final da legislatura, visto que a lista pela qual o deputado afastado foi eleito foi a quarta mais votada na última eleição.”

O Plataforma procurou saber junto de Sulu Sou qual seria a estratégia de defesa e se já tinha advogado. O ativista preferiu não responder. “Só podemos dizer que vamos dar o nosso melhor e que acreditamos que o sistema judicial está capaz de fazer um julgamento justo”, disse Sulu Sou.

Morte anunciada

Até agora, Marques da Silva entende que, no essencial, os procedimentos processuais e a aplicação da lei foram feitos de forma correta e é por isso que considera que o caso Sulu Sou deve ser interpretado de um ponto de vista político. “Além de calar vozes discordantes, porque é disso que se trata, há ainda uma questão importante. Se perder o mandato, vai haver eleições intercalares. Há uma série de listas que estão interessadíssimas na perda de mandato dele.”

O jurista dá como exemplo as mais votadas, como os Kaifong, os Operários, e as listas apoiadas pelo empresário e antigo deputado Chan Meng Kam, e o atual deputado Mak Soi Kun. “Obviamente que já estão a ver a hipótese de terem mais um”, afirma.

Para Marques da Silva, os deputados optaram pela suspensão do mandato para dar um sinal claro à população. “Não vale a pena discordar porque o sistema tem força suficiente para afastar as vozes discordantes. Foi uma opção política que os deputados tomaram, que é legalmente possível. A assembleia tomou a opção de não proteger a sua independência”, refere.

Mas para o jurista, há ainda outra leitura a fazer. “Não vou ao ponto de dizer que isto foi a morte do segundo sistema, mas contribuiu para um grande descrédito.”

Marques da Silva alerta de como “o medo e o medo de ter medo” são perigosos para as liberdades. “Já faltou bem mais para as pessoas que têm amor à liberdade e democracia se sentirem mal em Macau.”

Sérgio de Almeida Correia afirma que o segundo sistema “é cada vez mais uma miragem” porque os princípios da separação de poderes e da independência judicial “têm sido constantemente colocados em causa”. 

O caso Sulu Sou, diz, é apenas mais um sinal da “erosão rápida” do segundo sistema. O advogado alerta para o perigo da inexistência de uma “sociedade civil forte”. “A isto soma-se o nepotismo, o clientelismo empresarial, a permanente falta de transparência da ação política e administrativa, o culto do sigilo, a falta de capacidade de tomada de decisões atempadas, o desconhecimento das leis e do pensar jurídico do segundo sistema, a ausência de quadros intermédios competentes e com capacidade de decisão, a falta de uma advocacia forte, independente, responsável e livre de conflitos de interesses, a inexistência de uma universidade que não seja subserviente ao poder político e económico e cujos dirigentes não se preocupem apenas em garantir a continuidade dos seus contratos e comissões sem grandes ondas”, aponta. 

O advogado entende que o Governo devia ter sabido ler os sinais e ser o primeiro a resolver o caso Sulu Sou “sem sangue”. “Em Pequim, as pessoas que acompanham a situação devem estar atónitas com os erros, perfeitamente evitáveis, que têm sido cometidos pela elite dirigente de Macau.”

Ainda assim, há esperança. “O julgamento de Sulu Sou pode ser uma ótima oportunidade para o poder judicial fazer a reafirmação da existência do segundo sistema, mostrando a sua independência, isenção e sentido de equilíbrio face ao poder político.” 

Sou Hei Lam

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