“Há uma geração que irá sempre olhar para a China por causa de Macau, e agora outra que olha para a China onde também está Macau”

por Arsenio Reis

O tempo e o pragmatismo das relações luso-chinesas, 18 anos após a entrega de Macau, deixam Lisboa mais indiferente à evolução sociopolítica de Macau. Raquel Vaz-Pinto vê o distanciamento como inevitável, numa altura em que, por outro lado, a China está cada vez mais presente em Portugal. A politóloga, especialista em política externa chinesa, admite que o princípio “Um País, Dois Sistemas” é cada vez mais percebido como “Um País, Um Sistema”, e prevê que o custo para Pequim seja o de maior alienação de Taiwan.

– O aprofundamento da relação entre Portugal e China nestes últimos anos, que tem sido sobretudo mais visível no plano económico, valorizou de alguma forma a questão de Macau ou remeteu-a para um plano mais recuado?

Raquel Vaz-Pinto – A relação de Portugal com a República Popular da China, ou com a China em geral, tem sido sempre uma relação muito pragmática. Nesse sentido, há esta última fase em que há de facto este enfatizar da diplomacia económica e das questões económicas, por uma série de razões diferentes. Por um lado, com medidas de maior austeridade que obrigaram a que o Estado [português] tivesse que vender determinadas empresas-chave em setores que a República Popular da China considera cruciais. Mas a este investimento falta a segunda dimensão, lusófona – sobretudo, Angola e Moçambique –, e aí Macau tem de facto um papel importante, e tem funcionado nesse sentido. Agora, por outro lado, depois da transição, da devolução de Macau à China, quando olhamos para as relações internacionais, Macau – do ponto de vista da perceção, e podemos estar a ser injustos – destaca-se sobretudo pela indústria do jogo. Essa é uma perceção/realidade que talvez seja dos aspetos menos positivos quando estamos a pensar em Macau no mapa. No Fórum Macau, na relação com a língua portuguesa, e, no fundo, na língua ser um instrumento também de diplomacia, aí a China não está a ser de todo original – tantos outros países o fizeram. O aprender o português tem de facto essa vantagem económica, mas também de política externa. Nesse sentido, eu vejo esta última fase com uma fase que reforça uma relação que sempre foi muito pragmática entre os dois intervenientes.  

– Há uma relação mais apoiada na língua, nas trocas culturais?

R.V.P. – Esse é um lado muito importante, até cada vez mais. Da mesma forma que hoje é muito frequente, do lado de cá, aprender o mandarim. Tenho vários alunos a aprender mandarim. Já não é uma coisa tão exótica como seria há 20, 15 anos. A questão da língua é importante, quer para os portugueses que querem entrar no mercado chinês, quer para os próprios chineses que querem estar em muitas destas sociedades que falam português. A política externa chinesa, sobretudo a partir daquele momento dos anos 1990 em que a China passa de exportadora para importadora de petróleo – em 1993 – implicou de facto esta ideia do ‘go global’, com as empresas chinesas a abrirem caminho, a estarem presentes em todas as partes do mundo, começando obviamente com a questão dos recursos energéticos e das matérias-primas. Isso obrigou a uma presença. No caso de África, até a um regresso depois daquela fase mais ideológica e de apoio aos movimentos de libertação. Esta é uma fase muito mais económica, muito mais pragmática. Há aqui também uma fase de aprendizagem: 20 anos depois, o que é que se aprendeu do ponto de vista de Pequim em relação a estes países? Implicou estar mais atenta, por exemplo, às questões locais. É o que faz parte – todos os países, quando começam a ter uma expressão internacional, também precisam, eles próprios, de compreender melhor. Não há uma realidade africana: há várias Áfricas dentro de África, como há várias Chinas dentro da China, e por aí fora. Nesse período de aprendizagem, é importante – e temos assistido a isso – que haja também uma interação com as sociedades locais, que haja uma aprender dessas culturas. Recordo-me que houve ali um momento, em 2008, 2009, em que se começou a ouvir muito aquela acusação de que a China apenas vinha buscar matérias-primas e recursos naturais, que era uma espécie de colonizador sem ser chamado de colonizador. E há ali um momento de olhar para tudo isto e pensar seriamente na realidade local. Aí, o fator da língua é um fator importantíssimo.

– Estando a China hoje muito mais visível em Portugal, Macau está-o visivelmente menos. Porque é que isto acontece? Porque é que há este distanciamento crescente entre Portugal e Macau?

R.V.P. – É natural. Durante séculos olhámos para a China pelos olhos de Macau, mesmo a nível dos nossos estudos. Ou seja, durante muito tempo falar sobre a China implicava falar só sobre Macau. O que se verifica, depois de 1999, é um processo normal – também um bocadinho natural – de conhecimento, de aprendizagem dessa China que, depois, tem uma escala que esmaga qualquer outra realidade. Há uma geração que irá sempre olhar para a China por causa de Macau, e há agora uma outra geração que olha para a China onde também está Macau.

– Lembrando a Declaração Conjunta, que ainda é um instrumento que liga Portugal e a China no que diz respeito a Macau, como é que se deve entender o compromisso que Portugal assumiu com a China? A que é que Portugal está hoje obrigado no quadro dessa Declaração?

R.V.P. – Portugal está obrigado a cumprir com todos os princípios e a forma de funcionar daquilo que é a organização política em Macau. Nesse sentido, essa relação entre Lisboa e Pequim tem corrido como acho que seria de esperar. Não querendo ofender quaisquer suscetibilidades, parece-me que a sociedade civil em Hong Kong é uma sociedade muito mais ativa, muito mais presente do que aquela que há em Macau. Nesse sentido, em toda a questão à volta de “Um País, Dois Sistemas”, o teste mais complexo é sem dúvida Hong Kong e não tanto Macau. Honestamente, quando estamos fora e falamos de Macau, a imagem que cola completamente com Macau é a imagem do jogo. Seria interessante tentar passar uma imagem, e também trabalhar Macau interligada com as províncias chinesas, que fosse mais do que apenas uma indústria de jogo. Do ponto de vista internacional, falamos de Macau e falamos imediatamente de jogo. E essa foi claramente uma opção política.

– Referiu a questão de Hong Kong e a dinâmica da sociedade civil de Hong Kong, que tem sido sempre um pouco diferente da de Macau. Nesse caso, temos visto que o Reino Unido tem tido uma postura não muito, mas um bocadinho diferente da de Portugal. Muito recentemente, lemos algumas das declarações do antigo governador Chris Patten sobre o processo de evolução política de Hong Kong e, se calhar, seria muito difícil imaginar o general Rocha Vieira a fazer o mesmo tipo de declarações relativamente a Macau.

R.V.P. – Acho que aí Chris Patten é uma figura em si. Mesmo durante o seu mandato, houve ali alguns momentos em que claramente foi muito mais além do que aquilo de que, diplomaticamente, se estaria à espera. Chris Patten está numa dimensão à parte, esteja onde estiver. Agora, sem dúvida [a abordagem é diferente] quando pensamos na contestação, quando pensamos na preocupação em garantir um aspeto pelo qual Hong Kong sempre foi muito conhecida e reconhecida, que é a questão do Estado de Direito, que tem sido muitíssimo forte. O que também está muito relacionado com o ‘timing’. Ou seja, quando se dá Tiananmen em 1989 há um ‘spillover’ imediato para Hong Kong, porque houve obviamente o receio – em alguns setores, o pânico – de que aquele seria no fundo o registo a seguir a 1997. Há muito essa preocupação. E, aliás, o 4 de junho é sempre um momento marcante em Hong Kong.

– Também em Macau, embora não haja tantas notícias sobre isso…

R.V.P. – Mas, lá está, mais uma vez: o enfoque mediático é Hong Kong, não é Macau. 

– Mas, dizia…

R.V.P. – Outro aspeto importante, que também está relacionado com essa tensão, é que Hong Kong foi absolutamente crucial na internacionalização e no financiamento da China. No fundo, o regresso de Hong Kong foi feito sempre com a maior das preocupações de que não houvesse qualquer instabilidade que afetasse os fluxos, que afetasse o ‘rule of law’, que é fundamental para que as instituições financeiras funcionem. Hoje em dia, há outras praças que vão ganhando força e, nesse sentido, Hong Kong já não tem o mesmo peso que teria há 20 anos. Isso aplica-se à ideia de “Um País, Dois Sistemas”, e mesmo em relação a Taiwan, sendo a grande destinatária desta ideia a sociedade taiwanesa. Mas, aqui o tempo não corre a favor da China. Quanto mais tempo passa, menos as gerações se lembram do que era essa vivência. Em relação a Taiwan, isso é claríssimo. Aquela geração que vem do Continente, obviamente sentia-se chinesa, e hoje em dia os mais novos sentem-se talvez mais taiwaneses do que chineses. Esse é um ponto importante que, aliás, também nos ajuda a perceber a eleição desta Presidente [Tsai Ing-wen]. Em relação a Hong Kong, talvez haja uma geração que se lembra daquele equilíbrio difícil e periclitante, de como era lidar com este colosso chinês, e há uma geração que acha que está a correr contra o tempo porque a lei geral vai durar 50 anos. Há um bocadinho de tudo isto. 

– Falava da importância do ‘rule of law’ de Hong Kong. Quando é que este ‘rule of law’ vai entrar em choque com o ‘rule by law’ da China continental e o que é que pode acontecer? Assistimos nesta altura a uma série de circunstâncias, já com algum impacto, onde há quem veja estar em causa a independência do setor judiciário – seja em Hong Kong, seja em Macau.

R.V.P. – Lembro-me daquela notícia sobre um milionário que fugiu para Hong Kong e que acabou por desaparecer, da questão dos livreiros…

– Vimos alguns líderes do movimento Occupy de Hong Kong condenados por manifestação ilegal em Hong Kong, o mesmo podendo acontecer em Macau a um deputado que acabou de ser eleito e que tem neste momento o mandato suspenso…. São sinais que começam a evidenciar esse choque?

R.V.P. – Claro. A principal consequência é que aos olhos de muitos habitantes de Taiwan “Um País, Dois Sistemas” é cada vez mais “Um País, Um Sistema”. Não é nada original, é algo que se diz muito no mundo académico: era uma ideia, que tinha sobretudo este intuito – qualquer Presidente chinês sonha com a reunificação plena do seu país. Simbolicamente, isto é absolutamente crucial. Mas, depois, há aqui uma tensão tremenda, porque de facto Taiwan é uma sociedade que, do ponto de vista político, é uma democracia liberal plena. Nesse sentido, tudo isto que vai acontecendo, seja em Hong Kong, seja em Macau, é visto pela sociedade taiwanesa. Logo, aí tem esse impacto. Depois, a questão do ‘rule of law’ e do ‘rule by law’. De facto, a China tem feito um caminho muito longo, mas obviamente em relação ao qual falta imenso. O investimento estrangeiro tem obrigado a China, em muitos aspetos, a oferecer alguma estabilidade nas regras. Agora, o grande desafio é claramente político – um desafio democrático, mas também liberal, dos tais direitos e liberdades que, para nós, são absolutamente cruciais. Tendo em conta tudo a que temos assistido nos últimos anos, mas também este último Congresso do Partido Comunista Chinês, não veria com muito otimismo a evolução destas situações de tensão. Quando falamos desta geração do ‘Umbrella Movement’ e do ‘Occupy’, há claramente dois mundos que se chocam, tendo a China também claramente ‘the upper hand’ – seja pela sua escala, seja pelo seu poder, efetivamente ‘hard power’.

– É inevitável que a atenção internacional, sobretudo de Portugal e Reino Unido por motivos históricos, se desligue do que será o destino das regiões administrativas especiais chinesas no processo de integração?

R.V.P. – Há um elemento quase de inevitabilidade. O que há em relação a Hong Kong que pode ser diferente – mas aí não estamos em condições de dar uma resposta – é a evolução do Brexit. Ou seja, no Reino Unido pós-saída da União Europeia talvez Hong Kong possa ter um interesse maior na sua relação de investimento, financiamento. Mesmo assim, a força gravitacional da China é fortíssima. Em relação a Portugal, há uma aposta cultural e a relação com a África lusófona. 

Maria Caetano

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