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China casa tradição com dogmas comunistas

No estúdio de Wang Haohua, mestre do milenar sistema originário da China ‘feng shui’, dois bustos de Mao Zedong e Confúcio estão pousados lado a lado. Trata-se de uma combinação outrora impensável: durante a Revolução Cultural (1966-76), radical campanha política de massas lançada pelo fundador da China comunista, o maior sábio da China Antiga foi rotulado de “pensador decadente e reacionário”.

Mas o pensamento tradicional chinês e as crenças religiosas, então combatidos como “superstições feudais”, estão agora a ser recuperados com o apoio do Partido Comunista Chinês (PCC), afirma Ian Johnson, jornalista radicado na China há vinte anos e vencedor de um Prémio Pulitzer.

“Julgo que o partido está a fazer isto porque entende que existe uma crise moral”, diz Johnson, durante uma apresentação do seu mais recente livro, “The Souls of China”, em Pequim.

Sob a governação do Presidente chinês, Xi Jinping, antigos rituais e elementos tradicionais chineses têm sido recuperados e até utilizados em propaganda política.

Na promoção dos quadros do Governo, até há pouco feita apenas com base no crescimento económico e manutenção da ordem social, passou a pesar também a promoção da cultura tradicional chinesa. 

Escândalos de corrupção e de saúde pública ou relatos de pessoas que são atropeladas e morrem porque ninguém os socorre, são frequentes na China.

“Existe esta sensação de que não se pode confiar em nada”, aponta o jornalista norte-americano, que escreve para o The New York Times, The New Yorker e The Wall Street Journal, entre outras publicações. “Será provavelmente o lamento que se ouve mais dos chineses: a noção de que a sociedade carece de um compasso moral”, afirma.

Em “The Souls of China”, um dos entrevistados por Ian Johnson diz: “Costumávamos achar que éramos infelizes por sermos pobres. Agora, que muitos de nós não somos mais pobres, continuamos infelizes. E percebemos que há algo que nos falta”.

É um relato comum entre os crentes do país, que criticam “o vazio moral” e o “excessivo materialismo” provocados pelo trepidante desenvolvimento das últimas três décadas de ‘boom’ económico.

“Até as crianças já pensam em dinheiro; as ligações entre as pessoas deixaram de ter como base os afetos”, lamenta à agência Lusa Ke Hua, uma residente de Donglu, aldeia situada a 140 quilómetros a sudoeste de Pequim e onde quase todos os habitantes são católicos.

“A fé dá-nos restrições morais e uma base enquanto seres humanos”, explica.

No total, o jornalista estima que haja entre 300 e 400 milhões de crentes na China, divididos pelas cinco religiões reconhecidas pelo Governo: Islão, budismo, taoismo, protestantismo e catolicismo. (As duas correntes cristãs estão separadas por razões administrativas).

Durante a Revolução Cultural, milhares de templos, mesquitas e igrejas foram encerradas e a vida religiosa praticamente cessou. Mao Zedong era o único ‘Deus’ no qual se podia acreditar.

Milhões de chineses iam em peregrinação para Pequim para verem o “Grande Timoneiro”, “O Maior Génio Vivo” ou “O Sol Mais Vermelho da Terra”… A tiragem do ‘Livro Vermelho’ com as suas citações – um manual de educação política que os chineses tinham de ler diariamente – ultrapassou os 5.000 milhões de exemplares.

A Revolução Cultural terminou em 1976, com a morte de Mao Zedong. “As pessoas começaram então a perceber que o comunismo foi um desastre”, diz Ian Johnson. “Hoje, a China é comunista só de nome”.

O jornalista considera que, desde então, a sociedade chinesa tem andado à “deriva”, sem valores morais comuns, alimentando um ‘boom’ no espiritualismo, nem sempre visível à superfície.

“Quando se anda nas cidades chineses, não se vê muitas infraestruturas religiosas”, explica Johnson. “Muito disto está a acontecer, não quero dizer de forma secreta, mas não imediatamente em frente aos nossos olhos”.

Entre 2014 e 2016, por exemplo, o Governo da província de Zhejiang, na costa leste da China, lançou uma campanha para remover as cruzes do topo das igrejas. No total, foram removidas 1.500 cruzes, mas apenas uma igreja foi demolida.

“O Governo não gosta da face pública do cristianismo”, opina Ian Johnson. “Não quer cruzes espalhadas pelo país”.

Num país oficialmente governado sob a égide do marxismo-leninismo e onde o papel dirigente do PCC é um “princípio cardial”, multiplicam-se “igrejas clandestinas”, algumas em casas particulares ou edifícios de escritórios, sem sinais exteriores.

Para Wang Haohua, que começou “desde criança” a estudar o ‘feng shui’ (literalmente “vento e água”, em português), Xi Jinping demonstrou já ser um crente naquele sistema com raízes na filosofia taoista que procura atrair energia positiva através da harmonia com os elementos da natureza, ao citar o filósofo Lao Tse, em 2014, durante o discurso de abertura da cimeira da APEC (Cooperação Económica Ásia-Pacífico).

“O bem supremo é como a água; beneficia todos sem tentar competir com ninguém’”, disse Xi, justificando assim a opção pelo Centro Aquático “Cubo de Água”, em Pequim, para receber aquela cerimónia.

Em entrevista à agência Lusa, o mestre diz que, em contraste com os edifícios em estilo soviético construídos após a revolução de 1949, as obras erguidas nos últimos anos em Pequim “respeitam as regras do ‘feng shui’”.

No estúdio de Wang, fotografias mostram-no no interior do complexo de Zhongnanhai, onde participa frequentemente em trabalhos de restauro, para garantir que a residência dos líderes chineses segue as milenares regras do ‘feng shui’.

“Na China, toda a gente acredita no ‘feng shui’” conta. “Mas muitos líderes recusam admiti-lo e optam por consultar-me em segredo”. 

João Pimenta-Exclusivo Lusa/Plataforma Macau

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