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“Macau só tem a ganhar se mantiver a função de interlocutor”

Para o diretor da Escola Superior de Línguas e Tradução do Instituto Politécnico de Macau é urgente investir mais nas áreas de tradução e interpretação para que a cidade possa ser uma ponte entre o Oriente e o Ocidente.

Mas há outras medidas a tomar na opinião de Luciano de Almeida. O diretor da Escola Superior de Línguas e Tradução do Instituto Politécnico de Macau (IPM) defende que a cidade tem de preservar o multiculturalismo que lhe é próprio se quer continuar a ser a via direta na relação entre a segunda maior economia mundial e os países de língua portuguesa. Em entrevista ao PLATAFORMA, o académico faz um balanço do estado da tradução e da interpretação na região e explica porque é que o setor da educação tem um papel determinante para que Macau se afirme no relacionamento entre o Continente e o espaço lusófono.

– Que balanço faz da conferência sobre “Interpretação e tradução: experiências, realidades e perspetivas”, organizada pelo IPM no início do mês?

Luciano de Almeida – A conferência pretendia assinalar os dez anos de cooperação com a União Europeia (UE) e ajudar na reflexão que temos vindo a fazer sobre o ensino da interpretação e da tradução no IPM. O balanço é claramente positivo e esperamos poder fazê-la com uma periodicidade bienal. Também quisemos refletir sobre alguns aspetos em concreto do nosso plano de estudos. É um trabalho que estamos a fazer e que deve estar concluído em fevereiro.

– Que alterações estão previstas com a revisão do plano de estudos?

L.A.Diria que não passará por acrescentar mais disciplinas. O tempo de estudo e de aprendizagem parece-nos adequado. O que é necessário é incorporar as novas tecnologias. O ensino da tradução e da interpretação tem evoluído muito e o nosso plano de estudos tem de refletir essa evolução. Além disso, também passará pela introdução do estágio que por agora não está previsto. Atualmente, o estágio acaba por se realizar através da presença dos nossos estudantes nos vários eventos que se realizam na RAEM ao longo do ano. A nossa intenção é de que, além destes eventos, se crie um espaço próprio para o estágio como unidade curricular com orientação científica e pedagógica.

– Na conferência, o chefe do departamento de assuntos linguísticos dos Serviços de Administração e Função Pública, Casimiro de Jesus Pinto, disse que o Governo vai realizar um estudo no próximo ano sobre as necessidades de tradução e interpretação do território. Que papel vai ter o IPM?

L.A.Segundo o que sei, será uma iniciativa do Governo. Penso que é importante que se faça um estudo rigoroso sobre as necessidades nas áreas da interpretação e tradução a médio prazo, e que esse estudo também incida sobre a qualidade atual da tradução e interpretação. As necessidades não podem ser medidas apenas sob o ponto de vista quantitativo. Também é importante considerar a qualidade. Diria que as traduções e as interpretações deixam muito a desejar nalguns casos.  E isto não constitui uma crítica, é apenas uma constatação. Há problemas que se podem ultrapassar com formação contínua, a chamada formação ao longo da vida.

– A seu ver, quais são as principais carências?

L.A.Há carências ao nível da qualidade e da quantidade de tradutores e intérpretes. Há que aumentar a capacidade de resposta. Não sabemos qual é o número, mas é muito elevado. Temos noção da necessidade pela quantidade enorme de solicitações de entidades públicas e privadas que recebemos para os apoiarmos. A perceção que tenho é que tem sido feito muito para colmatar as necessidades. Mas o ritmo a que crescem as necessidades é claramente superior ao ritmo a que formamos tradutores e intérpretes. O número que o Chefe do Executivo adiantou aponta para a necessidade de 200 a 300 tradutores e intérpretes. Mas há que ter em conta que, enquanto se formam estes 200 ou 300 quadros, surgem novas necessidades.

– Que medidas pode o IPM tomar para ajudar a colmatar estas lacunas?

L.A.O IPM tem respondido a todas as solicitações que nos chegam. É uma ação que não se insere no plano pedagógico do instituto, mas que se insere naquela que é nossa missão que é a de prestar serviços à comunidade. Nos últimos anos, ampliámos o programa de desenvolvimento de formação dos nossos docentes, em particular para os professores bilingues, que está a dar frutos. Praticamente todos têm mestrado e um número muito significativo vai obter o grau de doutor nos próximos meses. Quanto mais qualificado é o nosso corpo docente, melhor a qualidade do ensino. Também temos aumentado a oferta de cursos e de vagas. Neste momento, temos três turmas diurnas no ensino do chinês-português, uma turma noturna para o sistema chinês-inglês, e uma turma noturna para o sistema português. À necessidade crescente temos respondido com o aumento da oferta. Há dois anos criámos o curso de ensino de chinês como língua estrangeira e, este ano, também criámos o curso de língua portuguesa destinado à formação de professores de língua portuguesa. Isto criará condições para que, no prazo de cinco a seis anos, sejam sustentáveis as políticas anunciadas pelo Governo de aumentar o ensino da língua portuguesa nos ensinos básico e secundário.

– O incentivo ao bilinguismo por parte dos governos de Macau e do Continente tem-se refletido no aumento da procura dos cursos do IPM?

L.A.A procura tem aumentado e é crescente face à importância que as autoridades locais e centrais dão ao ensino do português na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Este ano, abrimos a licenciatura de Ensino de Português e uma nova turma, e preenchemos todas as vagas. Estamos a falar de 50. Teríamos preenchido mais se houvesse mais vagas disponíveis. Se as relações comerciais entre a China e os países lusófonos continuarem a ter o incremento que têm tido, vai haver necessidade de mais quadros.

– Macau tem capitalizado ao máximo este incentivo ao bilinguismo?

Da parte das autoridades tem-se feito um esforço claro para aumentar a quantidade e a qualidade da oferta formativa. No entanto, as instituições de ensino públicas também fazem parte da estrutura da Administração Pública e é necessário que também tenham proatividade. Quando falamos nos serviços públicos, as instituições de ensino públicas não se podem excluir e, se detetam necessidades ou entendem que não têm recursos, devem fazer propostas. Estamos todos no mesmo barco. Não tenho dúvidas de que tem de ser feito mais. É importante que se quantifiquem as necessidades para que se tomem medidas.

– Que papel tem o setor da educação nesta função de plataforma atribuída a Macau?

L.A.A educação é extremamente importante na cooperação entre os povos. Basta pensar no que acontece com Inglaterra e os países da Commonwealth. Há um fluxo enorme dos estudantes desses países para Inglaterra e um número elevado regressa à origem. Também vemos isso na comunidade francófona. E o mesmo se passa com Espanha em relação à América Latina. Os exemplos mostram que as relações culturais se mantêm e se refletem no ensino. A comunidade de países de língua portuguesa começa agora a conhecer esses contornos. Tem-se verificado um aumento mais significativo nos últimos tempos depois de um período em que não tinha praticamente expressão. Todos os nossos alunos passam um ano em Portugal e isso é extremamente importante porque lhes permite estar em contacto permanente com a língua e embeberem-se da cultura. Este processo tem-se desenvolvido e já não se limita aos cursos de tradução. Por exemplo, os alunos do curso de relações comerciais também passam um ano em Portugal. Neste momento, temos cerca de 100 alunos dos cursos de licenciatura em Portugal. O intercâmbio é fundamental porque, além da aprendizagem da língua e cultura, permite a criação de uma rede de contactos que é essencial quando queremos desenvolver projetos de cooperação. A mobilidade dos alunos, que faz parte ativa das políticas do ensino em Macau, vai trazer ganhos estruturais a médio e longo prazos. Ou seja, tudo vai ser mais fácil na comunicação entre pessoas quando esta rede for significativa. Imagine-se que os 100 alunos que temos em Portugal fazem 10 amigos, são mil contactos que antes não existiam. Basta pensar que o programa Erasmus foi considerado um dos programas mais importantes na consolidação dos objetivos da UE.

– O que oferece e ganha Macau com a aposta no espaço lusófono em detrimento de outras zonas do mundo? Qual é a vantagem acrescida em que se forme este bloco?

L.A.Macau tem todas as vantagens por uma razão histórica. Há 500 anos que é uma porta entre o Ocidente e o Oriente. Macau só tem a ganhar se mantiver essa função de interlocutor. Não é a plataforma entre coisa pouca. É a plataforma entre a segunda maior economia mundial e o espaço de língua portuguesa. Tem todas as condições para ser essa ponte, mas se não aproveitar a oportunidade as pontes vão-se fazer na mesma. Este movimento entre a China e os países lusófonos é um movimento que não para. Tendo a China a posição que tem na economia mundial e estando os países portugueses espalhados por todos os continentes, é evidente que Macau tem uma oportunidade única. Não acredito que perca essa oportunidade, mas também não acredito que os resultados sejam visíveis a curto prazo.

– Até que ponto Macau é realmente necessário para que os restantes territórios do espaço lusófono cheguem ao Continente em vez de optarem pela relação directa?

L.A.Falta a multiculturalidade na relação directa que aqui é natural. Não é só a língua que é muito diferente. Estamos a falar de duas culturas que são muito díspares e Macau entende-as. Essa é a grande mais-valia de Macau, que tem de aperfeiçoar e tirar partido. Haverá naturalmente necessidade de tomar medidas que reforcem essa multiculturalidade. Não pode ser só uma consequência das relações históricas. Tem de continuar a ser construída e, de certa forma, isso já está a fazer-se através da mobilidade dos alunos.

– Sente que houve um aumento da procura dos cursos de português-chinês desde que Macau assumiu de forma mais política a função de plataforma?

L.A.Neste momento, temos aqui cerca de 100 alunos dos países lusófonos e perto de 100 alunos do IPM nos países lusófonos. E não é apenas o número que aumenta. O interesse também. A sensibilidade dos alunos para a mobilidade para os países de língua portuguesa é manifestamente maior do que há cinco anos. Agora, tenho pedidos de alunos para irem estudar para Portugal que não têm essa experiência prevista no plano curricular dos cursos que frequentam. Há uma maior consciência da importância de aprender português e a cultura portuguesa.

– Que impacto pode ter esta aposta de Macau e de Pequim no bilinguismo ao nível da importância que o português pode assumir no plano internacional?

L.A.O que fez com que o inglês tenha assumido a posição que assumiu é ter-se transformado em língua franca que, em grande parte, se deveu à globalização do comércio. Há 40 anos, uma das línguas obrigatórias era o francês, que hoje se estuda essencialmente por gosto e que perdeu por completo o papel de língua de comunicação. No espaço lusófono, temos de um lado a China – que é umas principais potências económicas do mundo -, e do outro países potencialmente ricos e em vias de desenvolvimento como Angola e o Brasil. Se este processo de cooperação económica entre a China e os países de língua portuguesa seguir o bom caminho, a língua portuguesa vai certamente ganhar projeção no espaço económico mundial.

– Porque acha que houve esta opção pelo português por parte das autoridades locais e centrais em detrimento, por exemplo, do inglês, que é a língua universal?

L.A.Há a consciência de que há um conhecimento reduzido do inglês por ambas as partes, sobretudo nas gerações mais velhas. Além disso, não basta conseguir comunicar. E, neste aspeto, face ao papel que Macau já tinha no entendimento secular entre estas duas zonas, houve condições para que o português assumisse importância, com a grande vantagem de que o conhecimento cultural do português é bastante superior face ao inglês para que se interpusesse outra língua. Um terceiro intermediário não iria simplificar, iria complicar. É uma oportunidade única para Macau e para os países de língua portuguesa. A China percebeu a importância da língua e que tinha uma porta. Os países de língua portuguesa também têm de perceber a importância de se relacionarem com a China e de terem essa porta que está aqui e é Macau. 

Sou Hei Lam

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