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Hamburgo, espelho do Mundo

Como habitualmente, as imagens mais difundidas da reunião das 20 potências mais ricas e poderosas do planeta privilegiaram o registo da violência urbana praticada por alegados grupos de anarquistas e anticapitalistas. 

O espetáculo imperou, em detrimento da verdadeira proporção das coisas: o saldo de uma centena e meia de pessoas detidas pela Polícia alemã (que, no meio do caos, soube manter a devida serenidade e contenção cívica!) não indicia porém mais do que uma arruaça, cometida por uma percentagem ínfima da multidão imensa de dezenas de milhares de manifestantes pacíficos que entenderam levar a Hamburgo o seu protesto contra essa caricatura perversa de um pretenso governo mundial que dá pelo nome de G20. Uma caricatura perversa, apesar da declaração dos 20 em defesa da liberdade de comércio internacional, contra as tentações protecionistas alimentadas por Donald Trump, e da declaração a favor do acordo de Paris, sobre as alterações climáticas, subscrita por 19 deles, que resistiram às objeções desse mesmo Donald Trump que, naturalmente, ficou de fora.

Uma caricatura perversa, apesar de tudo, porque os 20 países mais ricos e poderosos do Mundo, em primeiro lugar, representam apenas os seus próprios interesses. Em segundo lugar, porque os mais ricos e poderosos não querem saber nem têm soluções para os problemas que hoje mais afligem os povos mas também porque, de facto, os mais poderosos de entre eles são precisamente os principais causadores das guerras, da destruição, da miséria que origina o êxodo massivo de populações e as tragédias que vivem no Mediterrâneo e no Índico. E, finalmente, são a caricatura perversa de um pretenso governo mundial porque são eles os principais responsáveis pelo sistemático adiamento da reforma das Nações Unidas, a única instituição internacional com legitimidade para suprir o caos e a desregulação generalizada em que desembocaram os processos de globalização económica e financeira. Desde o fim da Guerra Fria que as violações do Direito Internacional não cessam de crescer e de se banalizar. A soberania do Estado é um conceito construído como pressuposto de toda a configuração moderna da nova ordem internacional emergente com a Paz de Vestfália alcançada em 1648. O fim da Guerra dos 30 anos travou as ambições imperiais dos Habsburgos consagrando o respeito pela autonomia do Estado enquanto sujeito de direito. Com a soberania do Estado iria depois conjugar-se a legitimidade democrática, por força da generalização do princípio da soberania popular e pela consagração do direito dos povos à autodeterminação, inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pelas Nações Unidas em 1948.

O único limite à prepotência e à lei do mais forte nas relações entre estados é o Direito internacional. Não há solução duradoira para a desordem mundial presente, fora do Direito internacional e, muito menos, à custa da violação sistemática dos seus princípios fundamentais. É suficiente ponderar os resultados trágicos das intervenções militares recentes no Iraque, na Líbia, na Síria ou na Ucrânia para compreender que a invocação demagógica da democracia e dos direitos humanos não desempenhou mais do que um papel meramente instrumental para a promoção de mudanças de regime favoráveis aos interesses económicos ou às conveniências geoestratégicos dos agressores. É fundamental regressar a uma interpretação restritiva das causas que legitimam o uso da força nas relações internacionais. A invocação da defesa dos direitos humanos tem conduzido fatalmente, como tem demonstrado a experiência mais recente, às consequências mais sangrentas e desastrosas. Há que dissociar, claramente, o recurso à força e o emprego de meios militares, da defesa intransigente dos direitos humanos que deve ser travada nos planos da opinião púbica, da diplomacia e da cooperação internacional. A bela cidade de Hamburgo, com os cenários de violência e de malabarismo político que exibiu, tornou-se o palco paradoxal das irreconciliáveis contradições que marcam esta triste atualidade. 

Pedro Carlos Bacelar Vasconcelos 

* Editor-executivo

 

 

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