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“O Governo faz aquilo que quer na Assembleia”

José Pereira Coutinho encabeça outra vez a lista Nova Esperança nas próximas legislativas. Garantindo que não irá mudar de estratégia apenas porque há mais listas a concorrer, o atual deputado diz que estas serão as eleições mais imprevisíveis da sua vida política. OS temas fortes da campanha serão os mesmos das eleições anteriores, até porque, diz, os problemas se mantêm. O candidato afirma ainda que é urgente treinar os jovens do território para a política, já que se nota falta de sensibilização para o tema. E diz temer pelo futuro de Macau enquanto não houver democracia.

– Dado que há mais listas a concorrer às legislativas deste ano, a sua estratégia vai ser diferente?

José Pereira Coutinho – Independentemente de estratégias, em jeito de balanço e como estamos às portas de uma nova eleição, sinto-me honrado por ter o grande privilégio de servir as comunidades de Macau — principalmente a comunidade chinesa, que é a maioria da população —, como português, honrando o país [Portugal], e dando o meu melhor contributo como natural de Macau. Num abrir e fechar de olhos, passaram-se 12 anos — correspondem aos 12 animais do zodíaco chinês. É um ciclo. É pena que nesta altura ainda não tenhamos jovens para nos substituir nesta importante missão que é servir as comunidades de Macau. Quase tudo foi conseguido desde o início, em 2005, até à presente data. Estivemos nos dois primeiros mandatos sozinhos na Assembleia Legislativa até este terceiro mandato em que fiquei mais bem acompanhado pelo meu colega, Leong Veng Chai, que é português — tem o passaporte português. É um português genuíno em termos de comunhão de ideais, de coragem, de luta para alcançar os objetivos delineados no programa político. Quanto às próximas eleições, como democrata, vejo-me bem. Quanto mais listas, melhor é. Quantos mais portugueses e macaenses, melhor. Mas é pena que não haja mais portugueses e macaenses a liderar uma lista sem precisarem de estar ao lado dos outros.

– Havendo mais listas e uma dispersão natural dos seus eleitores por outros candidatos, corre o risco de não ser eleito?

J.P.C. — Em eleições, tudo pode acontecer. A beleza da democracia é o facto de o povo ter o poder de eleger aquelas pessoas que merecem ser eleitas e de tirá-las desse lugar quando sentem que não estão a cumprir aquilo que esperavam que tivessem cumprido. Este quarto mandato é o que me desperta mais curiosidade. Não se sabe muito bem o que esperar do resultado. Em primeiro lugar, porque há um maior número de listas, nunca dantes visto em Macau. Havendo esta situação, há uma dispersão de votos por todas as listas. As pessoas sabem que há mais possibilidades de serem eleitas se houver uma dispersão das listas. Em segundo lugar, os residentes de Macau são mais conhecedores da realidade depois de tantos anos de sacrifício, de enganos e de diminuição da qualidade de vida. Quer queiram quer não, vão abrir os olhos para ver em que mundo vivemos, por que é que temos em Macau tanto dinheiro e as pessoas lutam para sobreviver. Isto não põe de parte o facto de um grande segmento social ser atraído por coisas como jantares de borla, viagens de borla, benesses de toda a natureza para as quais é aliciado. E isto também é natural devido à sua baixa escolaridade, por terem uma ideia muito interesseira e mesquinha, e por não pensarem que, ao se comportarem dessa maneira, prejudicam os filhos e netos quanto ao seu futuro em Macau.

– Diria que é por terem um total desconhecimento do que é a política que as pessoas se tornam aliciáveis?

J.P.C. – Não há ensino de política no [ensino] secundário nem nas universidades de Macau. E o Governo é muito sensível ao termo ‘política’. Quando se fala em política, parece que estamos a falar num monstro que tem duas cabeças, que serve para amedrontar os miúdos, mas isso traz efeitos nefastos em termos de competitividade da nossa juventude. Ao não perceberem nada de política, entram no mercado de trabalho com um défice gravíssimo em termos de compreensão sobre a forma como a sociedade é composta. É nesse aspeto que as seis concessionárias de jogo preferem mão-de-obra não-residente – porque os indivíduos que vêm de Hong Kong, dos Estados Unidos e da Austrália estão muito mais bem preparados e sensibilizados para fazer uma leitura dos factos na área profissional e da sociedade em geral. Depois temos outra coisa que também diminui em termos de competitividade os nossos jovens de Macau, que é a questão linguística. Nesse aspeto, nós temos a experiência do dia-a-dia — as pessoas que são entrevistadas para serem nossos assistentes têm dificuldade em dialogar em inglês, têm dificuldade em escrever em chinês, e já nem se fala no português. Fico preocupado com o futuro de Macau, porque nós todos vamos envelhecendo e quando olhamos para a Assembleia Legislativa vemos que a média de idades é extremamente elevada, e os jovens que são empurrados para lá não têm pedalada para estarem lá. Não existe uma fase intermédia da política, como existe em Hong Kong — através dos ‘district councils’, que são os municípios que formam os jovens para depois serem deputados. Ao não passarem por esta fase, desconhecem os problemas sociais, nomeadamente da habitação, da saúde, da violência doméstica, do trânsito rodoviário. Quando dão o salto e, por sorte ou por outras razões, são deputados, têm dificuldade em compreender e em saber como resolver, com mais uma agravante: nas escolas, não estudam o que o Governo faz nem quais são os serviços públicos. Para atender pessoas é preciso inspirar confiança nas respostas que são dadas, mesmo que nós não tenhamos poderes para ajudar a resolver os problemas. Servimos de ponte entre as entidades oficiais e a pessoa que apresenta queixa, no sentido de tentar ajudar a resolver o problema. Mas, se ao dialogar com essa pessoa, não se conseguir transmitir confiança de que se é capaz de ajudar a resolver o problema, é evidente que essa pessoa perde a confiança e nunca mais volta. É nesse aspeto que os jovens — principalmente os nossos assistentes — levam pelo menos meio ano a estudar e a perceber aquilo que as escolas não ensinam cá em Macau. A falta de educação política, a falta de conhecimentos sociais de Macau, a falta de conhecimentos históricos de Macau, a falta de  conhecimento das questões faz com que os nossos jovens sejam pouco competitivos no mercado local. Há outra coisa mais grave: mesmo que eles queiram, os dois maiores empregadores são a função pública e os casinos. Tudo o resto são satélites. A indústria casineira é extremamente pesada e isto dificulta o aparecimento de outras indústrias em Macau que sejam totalmente independentes da indústria dos casinos. Não estou a ver um futuro brilhante para os jovens em Macau. E é isto que entra em contradição com a captação dos talentos. O que é que os talentos dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido vêm cá fazer em Macau se na função pública não se propaga a meritocracia? Dentro da função pública há tremendas injustiças que ocorrem por graxa e por amizade pessoal. Por isso, é que acho que enquanto não tivermos um Chefe do Executivo eleito pela maioria da população, Macau não vai a lado nenhum.

– O sufrágio universal vai constar do seu programa deste ano?

J.P.C. – Para o bem de Macau e para o bem do futuro da juventude de Macau, é preciso ter democracia para que eles [governantes] sejam responsáveis perante os cidadãos. 

– Mas, dado que 2017 passou e Hong Kong continua sem o sufrágio universal, é possível que Macau consiga alcançá-lo?

J.P.C. – Em Macau nunca há de acontecer nada melhor do que em Hong Kong. Macau andou sempre a reboque de Hong Kong. Duvido que, com o extremismo de Hong Kong, alguma vez tenhamos a médio prazo eleições [diretas] do Chefe do Executivo, tendo em consideração a nova geração que vai governar a China a partir de outubro — o poder estará muito mais centralizado no Presidente Xi Jinping, à moda do Presidente Putin [Rússia]. Mas é nossa obrigação passar aos jovens de Macau a mensagem correta daquilo que vemos, sentimos e vivemos. Fazendo o contrário, estamos a enganar os jovens. Cada vez mais sinto que as pessoas evitam dizer a verdade daquilo que veem e daquilo que sentem, porque, quando aparecem injustiças, na maior parte das vezes, pessoas com responsabilidade na sociedade calam-se. 

– A sua base de apoio é a função pública. Desta vez, tem falado muito nos jovens. Porquê?

J.P.C. – Os jovens são o futuro de Macau. Quando uma pessoa envelhece passa a ser saudosista, começa a falar mais do passado. É o nosso defeito neste momento — meu, da Rita [Santos] e do Leong Veng Chai. Estamos a sentir uma grande preocupação porque, se um dia abandonarmos, quem vai pegar nisto? É por isso que estamos a fazer o máximo esforço. Isto não é novo, porque já no ano passado dissemos que queríamos treinar. Falhámos…

– Refere-se a treinar jovens para seguir a carreira política?

J.P.C. – Exato. Treinar jovens… Falhámos.

– Porque falharam?

J.P.C. – Porque Macau é uma sociedade muito materialista e há muitos atrativos. Há muitas coisas que fazem com que os jovens se desviem da ética, moral e dos valores de defesa da sociedade. 

– Mas continuam a tentar treinar jovens?

J.P.C. – Nunca deixámos. Tem sido um trabalho contínuo. O Gilberto [Camacho] é um deles. É um dos melhores. É uma pessoa séria, usa a cabeça para pensar, tem como substrato os valores que nós muito prezamos, que é ser justo, ajudar e, nos momentos difíceis, dar a cara. É isto que falta em Macau. Todos sabem que nestes dois meses que não tenho estado na Assembleia Legislativa tenho recebido muitos telefonemas dizendo que a Assembleia está morna, não há agitação. A Assembleia foi sempre morna — uma voz não faz nada. A maior parte dos deputados não é eleita pela via democrática, por isso é que cada vez mais os cidadãos de Macau acham que a Assembleia é um mero mata-borrão do Governo. O Governo faz aquilo que quer na Assembleia. Mas isto não é novidade. A minha grande preocupação é as pessoas acomodarem-se como se fosse um dado adquirido. Não me conformo com isso.

– O programa eleitoral deste ano será muito diferente do das legislativas passadas?

J.P.C. – Eu praticamente copiei o programa político de 2013. Habitação: nada está feito. Saúde: nas ruas da amargura. Trânsito rodoviário: não é para nós. A segurança social devia ser regime obrigatório, mas é à vontade do freguês — se a empresa quer, dá a previdência social. A qualidade ambiental é aquilo que temos. Segurança alimentar: nas ruas da amargura. As galinhas em Macau crescem em três meses mais do que crescem em Portugal no espaço de um ano. Tomam hormonas. E o mesmo é extensivo aos peixes, que não são do mar. São produzidos o mais rapidamente possível para serem vendidos. Não temos uma inspeção sanitária de confiança. Onde é que está a defesa do consumidor? Macau é uma cidade cara e os salários aparentemente atrativos não compensam os efeitos colaterais que podem advir a curto e médio prazo. Um dia pagamos caro. É por isso que cada vez mais as pessoas vão fazer os exames médicos na Tailândia. Uma pessoa que não tenha seguro de saúde em Macau corre o risco de ter de pagar muito dinheiro caso tenha a infelicidade de ter uma doença grave. 

– Isso significa que os problemas de 2013 continuam a existir. Por que é que havendo tanto dinheiro no território continua a ser tão difícil melhorar nalguns sectores?

J.P.C. – Em primeiro lugar, tem que ver com o facto de Macau ser dominado por meia dúzia de super influentes empresários que controlam a indústria do jogo e o Governo. Quando eu digo que controlam a indústria do jogo, dou-lhe um exemplo: o Governo apresentou uma proposta de lei de interdição de fumo dentro dos casinos e a proposta de lei foi aprovada maioritariamente por 28 deputados e desceu à especialidade. Quando subiu outra vez já não era proibição total, era parcial. Alguém ou um grupo restrito de super influentes conseguiu dar a volta, não obstante a boa vontade do secretário Alexis Tam.  Em segundo lugar, temos titulares de cargos públicos que são incompetentes ou então querem meter ao bolso. O resultado está à vista: quem paga a fatura da incompetência e dos desvios é o cidadão. Desde o estabelecimento da RAEM, nunca vi que a escolha dos secretários fosse por terem valor e competência ou por terem feito trabalhos relevantes. 

– Alguns deputados optaram por apresentar listas separadas para manterem a posição na Assembleia Legislativa. Por que é que não fez o mesmo?

J.P.C. – Não estamos em condições de dividir listas. Enquanto não houver avanços democráticos no processo eleitoral, vai ser muito difícil isso acontecer connosco. Em primeiro lugar, porque o número de assentos é muito diminuto — 14 para tanta gente. Em segundo lugar, não temos condições internas para nos separar. 

– Nos últimos tempos, o Pereira Coutinho acusou o Gabinete de Ligação do Governo Central de favorecimento a outro candidato, depois de não o ter convidado para um jantar. Veio depois pedir desculpa. O que se passou?

J.P.C. – O início disto tudo tem a ver com um jantar. Sou avesso a injustiças, não fico calado. Não posso treinar o meu caráter de forma a acomodar-me perante injustiças, mais a mais quando caem em cima de mim e da Rita Santos. Em segundo lugar, sempre fui o primeiro a dar a mão à palmatória quando peco — ao pôr todo o Gabinete em cheque quando a questão passava por um departamento, não me faz nenhum mal [pedir desculpa] por ter metido tudo dentro do [mesmo] bolo. 

– O Governo Central está a tentar interferir nas eleições?

J.P.C. – Quem é de Macau sabe muito bem o que se está a passar e o jantar é elucidativo. 

– Isso quer dizer sim?

J.P.C. – O jantar diz tudo. 

Luciana Leitão

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