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Quatro retratos de uma ponte humana

Nunca antes se ouviu tanto a palavra plataforma associada a Macau, para designar a ponte que estabelece entre os países lusófonos e a China continental. Normalmente, fala-se de produtos, trocas comerciais, negócios. Mas há pessoas cuja vida se faz nestas travessias. É o caso de Álvaro Rodrigues, António Barros, Shee Va e Ivo M. Ferreira.

Quatro pessoas, quatro histórias que se cruzam entre Portugal, os países lusófonos, Macau e a China continental. Shee Va, Ivo M. Ferreira, António Barros e Álvaro Rodrigues têm diferentes ocupações profissionais e pessoais. Em comum, um ponto: são exemplos reais da ponte que se estabelece entre a China e os países de expressão portuguesa.

Shee Va, médico, 61 anos, tem fisionomia oriental, mas nasceu em Moçambique, depois de os seus pais terem partido de Cantão, em busca de condições melhores. 

A história das suas origens inicia-se de forma insólita. “Nascemos e tínhamos os pais velhos”, diz. O pai já estava em Moçambique, na década de 1930, mas a mãe levou 20 anos a conseguir juntar-se, dada a guerra sino-japonesa e depois a guerra civil que entretanto assolaram a China.

Ainda que instalados em Moçambique, tanto ele como os irmãos falavam cantonês e português com os pais. “Éramos bilingues sem o ser — fomos analfabetos de chinês até idade adulta”, conta, esclarecendo que foi só mais tarde que aprendeu a ler e a escrever caracteres, na Delegação Económica e Comercial de Macau, em Lisboa.

Entretanto, fez o primeiro ano da licenciatura em Medicina em Moçambique, acabando por concluir os estudos em Portugal, logo a seguir a ter eclodido a Revolução do 25 de Abril de 1974, que depôs o regime ditatorial do Estado Novo.

Macau surge, pela primeira vez, quando estava a fazer o estágio. “A minha mãe tinha tido uma vida muito traumática por causa da guerra na China, ela não queria muito vir, mas viemos para Macau à aventura — até fomos à aldeia deles”, recorda. 

Em Macau, conheceu a mulher e nasceu-lhe um dos filhos, acabando por ficar sempre ligado à região. E,  ainda que tenha regressado a Portugal para concluir a especialidade em gastroenterologia, viria a regressar definitivamente em 2012. Macau era então já muito diferente. “Podíamos dizer que a sociedade era fechada, porque todos se conheciam, mas também era aberta, porque, comparativamente à comunidade chinesa, a [comunidade] portuguesa é mais aberta”, diz.

A Macau de hoje é também mais estranha por outros motivos. “Ganha-se mais, tem-se mais trabalho cá, mas a habitação é um grande problema”, assinala. E, no caso dos filhos, considera que “a perspetiva de futuro é difícil”, até porque o mais novo “pouco fala” cantonês.

Ainda assim, hoje em dia, cada vez mais interessado em manter vivas as suas ligações às origens, o médico realça que se tem dedicado a escrever livros que se debruçam as festividades, rituais e a cultura chinesa.

Mesmo em Portugal, no seio da comunidade chinesa que ali se encontra radicada, o médico dedicava-se a explicar e estudar os rituais e origens. “Em Macau (…) quando escrevo, tento passar essa informação para a comunidade ocidental e fazer a ponte”. Mas tem-se apercebido de que a ponte é unilateral. “Portugal quer conhecer a China, mas não vejo que se faça o outro sentido, em termos de a China conhecer Portugal.”

Um realizador desde sempre

Nasceu em Portugal, mas “filmou mais vezes em Macau” do que no país-natal. Ivo M. Ferreira, realizador de cinema, 41 anos, reparte a sua vida entre os dois territórios, desde que cá chegou, pela primeira vez, na década de 1990.

“Sou de Lisboa, alfacinha de gema, três gerações de Lisboa, na Rua da Madalena”, começa por dizer. Os pais são atores e esteve, por isso, sempre envolvido na vida artística, habituando-se, desde pequeno, a fazer serões no Teatro da Comuna para acompanhá-los. Mas, contrariamente aos pais que se dedicaram ao teatro, Ivo M. Ferreira, desde os 12 anos, decidiu que ia tornar-se realizador de cinema, procurando uma expressão que capturasse de forma mais definitiva a arte da representação.

Aos 18 anos, em 1994, antes de ingressar na Escola de Cinema de Budapeste, quis fazer uma viagem. “Decidi viajar nesse ano e tal, antes de Budapeste, a caminho da Índia”, recorda. Pelo meio encaixou Macau, até porque tinha amigos que residiam na região. Gostou e deixou-se ficar durante quase quatro anos. “Entretanto, tinha vontade de filmar Macau e, durante esse tempo, tive um filho e fiz o filme ‘O Homem da Bicicleta’, com o António Pedro”, recorda.

Nessa primeira passagem pelo território, teve muitas experiências, chegando a trabalhar como fotógrafo para o jornal em língua portuguesa Ponto Final e como assistente de realização para o canal de televisão TDM. Cedo percebeu de que “não poderia exercer a profissão unicamente em Macau”, por não haver mercado nem interesse.

Cresceu profissionalmente fora do território, rodando longas e curta-metragens em vários pontos do mundo, regressando para filmar em Macau, sempre que possível.

Há seis anos mudou-se novamente para o território e abriu uma loja de produtos tradicionais de Portugal, a Mercearia Portuguesa, em conjunto com a mulher, a atriz Margarida Vila-Nova.

Entretanto, os inúmeros prémios que recebeu a sua mais recente longa-metragem, “Cartas de Guerra”, nos diferentes festivais de cinema, abriram-lhe as portas para o mercado do outro lado da fronteira. “O filme foi comprado e está a ser distribuído em VOD e DVD na China.” Aliás, a película “Hotel Império”, cujas filmagens terminou recentemente, é já uma coprodução luso-chinesa. E o cineasta tem convites para outras parcerias  na China continental.

E, ainda que esse mercado seja promissor, Macau não o é, no que toca ao cinema. “Há muito pouco trabalho”, diz. Mas Ivo M. Ferreira gosta de viver no território. “Gosto de estar ao lado de Hong Kong e de Zhuhai; gosto de viver em Hac Sa em frente à praia e ao mar; gosto de estar seguro (…); gosto de levar 15 minutos a deixar os miúdos na Escola Portuguesa”, diz.

Agora de partida para Portugal, onde ficará por um ano, o realizador tem vários projetos em carteira. Em julho, deverá começar a montar  “Hotel Império”, ao mesmo tempo que prepara um filme sobre as FP-25, a organização armada clandestina de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Pelo caminho, ainda está a preparar uma curta-metragem, além de, em janeiro, começar a preparar uma série policial de dez episódios intitulada “Sul”. Em setembro de 2018, regressa à base, a Macau.

Um homem do mundo

Gestos serenos, António Barros, diretor do Aeroporto Internacional de Macau (AIM), nasceu e cresceu na Guiné-Bissau, mas dali saiu, já em 1976, depois de uma guerra que garantiu a independência à antiga colónia portuguesa. “Tive uma bolsa e fui para Cuba estudar”, diz. “Era um país socialista, estava-se no período de revolução, e tinha um currículo muito avançado na área da educação.”

Ali permaneceu durante sete anos. A adaptação era fácil, até por ser um país bastante hospitaleiro. “Falam espanhol, têm cultura latina”, justifica. “Gostei de lá estar — fui professor-aluno, dei aulas para ganhar mais dinheiro, tinha boas notas”, recorda. E não era o único guineense a estudar em Cuba, já que um acordo entre os governos dos respetivos países facilitavam esse intercâmbio.

Estudou engenharia electrónica na vertente de telecomunicações, tendo depois regressado a uma Bissau muito diferente, e já sem grande parte da sua família. Começou por trabalhar nos Aeroportos da Guiné-Bissau e foi aproveitando para apostar na formação. Passou por Espanha, México, Canadá, onde foi desenvolvendo a especialização em Navegação Aérea e Gestão. Mais tarde, veio a ser diretor-geral dos Aeroportos da Guiné-Bissau.

Entretanto, já casado e com filhos, surgiu a hipótese de vir para o território em 1995. Desempenhou inicialmente um cargo técnico no Aeroporto Internacional de Macau, enquanto engenheiro de telecomunicações, tendo depois subido na hierarquia da ADA, a empresa responsável pela gestão da estrutura.

Era suposto ficar por três anos, mas permaneceu até hoje, agora como diretor do Aeroporto Internacional de Macau. Nem a transferência de Administração do território, em 1999, o fez regressar.

Habituou-se à terra e, diz, acabou por construir “uma carreira nova”. “Macau tem o seu encanto, há muita mestiçagem em Macau, muita tolerância — acho que o pessoal de Macau é muito tolerante”, explica. Depois, por ser um território pequeno, considera-o “fácil” para educar crianças.

No território, esforça-se por manter viva a ligação à sua cultura, tendo inclusivamente exercido funções de presidente da Associação dos Guineenses, Naturais e Amigos da Guiné-Bissau. Procura que os seus filhos se mantenham ligados à sua terra de origem e vai lá com frequência, ainda que intercale com Portugal, já que a sua mãe encontra-se em Lisboa. “Os meus filhos falam crioulo — o mais pequeno fala muito mal [nasceu em Macau], mas mantêm as raízes portuguesas e guineenses”, destaca, orgulhoso.

Em casa cozinha-se gastronomia portuguesa e guineense, ainda que faltem alguns ingredientes no território. “Alguns pratos [guineenses] conseguem-se”, diz.

Entretanto, ainda que longe, Cuba mantem-se como uma boa recordação, à qual conseguiu ir regressando até porque a sua filha também acabou por lá ir estudar.

Com os seus filhos a seguir o mesmo trajeto internacional do pai, António Barros diz que “neste mundo globalizado” é essa a tendência.

Um cabo-verdiano de Macau

Fala cantonês e passou mais de metade da sua vida no território. Álvaro Rodrigues, advogado, 48 anos, é natural de Cabo Verde, mas é em Macau que se sente em casa.

Nasceu na Ilha de Santiago e, aos 21 anos, ganhou uma bolsa da Fundação Macau para fazer a licenciatura em Direito na Universidade de Macau.

De início, foi um choque. “Pensei que, sendo uma colónia portuguesa ou um território chinês sob administração portuguesa, haveria muitas semelhanças com outras colónias”, diz. Mas era tudo diferente.

Aos poucos, e com a aprendizagem do cantonês, tornou-se mais fácil. “Passados uns tempos, arranjei um trabalho que requeria o conhecimento do chinês — pelo menos falado — porque era atendimento ao público na Conservatória do Registo Predial, e fui quase forçado a aprender para poder trabalhar e sobreviver”, destaca.

Em Cabo Verde, ainda residem os pais e alguma família, enquanto os irmãos estão distribuídos por vários pontos do mundo, entre o arquipélago africano, França, Itália e Macau. Isso não o preocupa, já que os avanços tecnológicos permitem estar “em permanente contacto”.

Na terra de origem, as praias são paradisíacas, de areia branca e água cristalina, diferentes do cenário do território. Isso também não o incomoda, já que, sempre que pode, desloca-se à Tailândia ou às Filipinas.

Hoje, casado, com três filhos, sente-se bem onde está. “Sinto-me mais em casa em Macau do que em Cabo Verde”, salienta. De Cabo Verde ainda trouxe dois sobrinhos para lhes garantir uma vida melhor.

Os três filhos já nasceram na região e as ligações à terra do pai são remotas. “Neste momento um está a estudar na Escola Portuguesa e dois numa escola chinesa. Estão bem enraizados”, destaca. Na opinião do advogado, é importante que se expressem em chinês, por “ser o futuro”. Sobre se tem pena que os filhos não se sintam mais ligados a Cabo Verde, Álvaro Rodrigues é, mais uma vez, pragmático. “Eles vivem cá, é este o meio deles, é a ele que se devem adaptar”, declara.

Quando chegou ao território, a ideia era “regressar”, depois de concluída a licenciatura. Porém, terminado o curso, as oportunidades sucederam-se e acabou por ser assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Macau. Depois, ingressou na Direção dos Serviços de Finanças, vindo posteriormente a fazer um estágio de advocacia e mestrado. Tinha “todas as condições” para continuar.

O Direito sempre foi uma paixão, por lhe interessar “defender as liberdades, os direitos e as garantias dos cidadãos”, em particular na área penal, por estar “mais ligada às pessoas”.

Entretanto, 1999 chegou e Álvaro estava expectante. Comprou apartamento em Portugal e preparou-se para uma eventual partida. Que nunca aconteceu. “A partir daí, deixei de pensar em regressar a Cabo Verde”, refere.

Em Macau, não sente saudades. “Temos duas associações em Macau que promovem a divulgação da cultura cabo-verdiana no território e, por isso, não é muito difícil estar perto de Cabo Verde e da realidade cabo-verdiana”, diz. Em casa, costuma comer a gastronomia do seu país de origem ou de Portugal, não sendo difícil encontrar os ingredientes necessários.

Pondera regressar a Cabo Verde quando se reformar, ainda que pretenda manter sempre o vínculo ao território. “Vou continuar ligado a Macau, Cabo Verde e a Portugal — há de ser esse triângulo.”

Luciana Leitão

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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