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“Ex-Procurador poderá vir a ser vítima do cargo que ocupou”

Continua a ser uma incógnita a data e os moldes em que deverá ser retomado o protocolo que vigorava entre a Ordem dos Advogados de Portugal e a Associação dos Advogados de Macau, suspenso desde 2013 e que permitia o reconhecimento recíproco para acesso ao exercício da profissão. Em entrevista ao PLATAFORMA, Jorge Neto Valente fala sobre a pouca qualidade do curso de Direito em chinês da Universidade de Macau e da ausência de mais e melhores magistrados. O presidente da Associação dos Advogados de Macau comenta também o processo atualmente em tribunal que envolve o antigo Procurador da RAEM, Ho Chio Meng. Independentemente do desfecho, Neto Valente — que também serviu de testemunha abonatória em tribunal — diz que fica a sensação de que surgiram muito poucas provas irrefutáveis.  

– Da conversa que irá ter com o bastonário da Ordem dos Advogados de Portugal, possivelmente no próximo mês, deverá resultar o retomar do protocolo entre a Ordem dos Advogados de Portugal e a Associação dos Advogados de Macau, suspenso desde 2013?

Jorge Neto Valente – Vamos falar sobre este protocolo — é um acordo em que cada parte estabelece as condições de acesso da outra. Já se viu que a maioria [em Macau] não quer fechar totalmente a porta, mas a outra maioria não quer abrir totalmente a porta. Se abrirmos a porta, com as condições económicas e a vida social que se vive hoje em Portugal, as pessoas que estão a emigrar para outro lado, julgam que vir para aqui [é fácil] — fala-se português, tem um sistema português, nada mais errado. É muito mais fácil emigrar para França do que emigrar para cá. Mais: as pessoas que queiram vir para cá ainda têm de resolver o problema da residência (…). Se são advogados, não podem estar empregados noutra coisa que não seja a profissão. Têm de garantir um ordenado mínimo porque, se ganham pouco, não conseguem aguentar-se cá e vão arranjar mais problemas. (…)

– Entretanto, já se passaram quatro anos desde que o protocolo foi suspenso.

J.N.V. – E é muito?

– Para quem, por exemplo, tem a ambição de vir para Macau trabalhar…

J.N.V. – O que eu gostaria era de estabelecermos as condições. Houve uma coisa que passou muito bem aqui [entre os advogados de Macau] — o numerus clausus que implica que não possam vir [para Macau] mais de 50 por cento dos que entraram no ano anterior. (…) E não pode ser mais de 10 por cento do total. Também não podem vir 37 — somos 370 — num ano. (…) E depois estabelecemos um exame. Antigamente não havia exame, havia um estágio de três meses num escritório, e isso já não é possível. Alterou-se tanto a similitude entre os dois sistemas, que é preciso mesmo aprender Direito de Macau. (…) Há muitas dissemelhanças e é indispensável que as pessoas se integrem no direito local, a começar pela Lei Básica. (…) Aqui também é preciso conhecer Direito Internacional Privado, porque Macau é muito pequena e não vive independente, vive em conexão com jurisdições vizinhas e não só, mas é preciso saber o que se passa em Hong Kong, na China [continental] (…) Não é só possibilitar às pessoas um meio de vida, é fazer com que sejam úteis à sociedade.

– Que impacto tem tido esta suspensão do protocolo? Foi uma pausa necessária?

J.N.V. – Foi uma pausa necessária. Há colegas que me dizem que é indispensável que venham advogados de Portugal para elevar o nível de qualidade da profissão, porque vêm mais bem apetrechados. Sim e não — não é só por ser amigo de A, B ou C, que os colegas são melhores. Agora, verificamos pelos exames que fazemos — fazemos exames a toda a gente, venham de Portugal ou de outro lado — que, de uma maneira geral, de Portugal as pessoas que se habilitam a vir para cá, têm vindo com boas classificações, com bons conhecimentos e têm dado provas de serem bons profissionais. Mas não é garantia de que todos os que queiram vir para cá sejam os melhores. Infelizmente, o que podemos ver é que o nível dos profissionais formados localmente nem sempre é o desejável e é por isso que não podem ser comparados. (…) Com a utilização cada vez maior da língua chinesa, é importante que os advogados de expressão chinesa encontrem o seu lugar, mas o que se verifica, por exemplo, é que muitos advogados de língua materna chinesa — e alguns até falam português — são pouco apetrechados no inglês, o que lhes barra o caminho dos grandes negócios internacionais. (…) Os que vêm de Portugal podem aguentar-se — não falando chinês, conseguem entender-se em inglês (…).

– Há muitas divergências no seio da classe quanto aos requisitos a cumprir para garantir o acesso à profissão em Macau de causídicos vindos de Portugal. Estamos perto de chegar a um consenso?

J.N.V. – Sabemos as condições que queremos. O que eu gostaria era de não falar em reciprocidade — a maioria que vota pode mudar de opinião e dizer que não é preciso fazer exame, porque há colegas que dizem que não deve haver exame nenhum e o que deve é ver-se os conhecimentos e deixar-se entrar. Em vez de se fazer um estágio que implica um mínimo de 18 meses, temos facilitado com um curso de adaptação para advogados já com formação de base e que tenham feito estágio noutro sítio qualquer. (…)

O que temos visto é que há uma diferença grande na formação das pessoas — o curso em português continua a ter melhor qualidade do que o curso em chinês, aqui em Macau. O que também se compreende porque, em língua portuguesa, os estudantes têm acesso a toda a literatura jurídica, não só local, que começa por ser em língua portuguesa, como também à literatura portuguesa — de Portugal e dos outros países de língua portuguesa. Os estudantes do curso de língua chinesa só conseguem ter acesso — os que dominam mal o português — ao que está traduzido para língua chinesa, que é muito pouco. (…) É preciso melhorar a qualidade do curso em chinês, é preciso aumentar o número de traduções de obras, doutrina e de jurisprudência de português para chinês (…). E também é preciso, para bem dos que querem estudar Direito de Macau, fomentar a melhoria dos conhecimentos de português desses estudantes de língua materna chinesa. Também verificamos que quer os que vêm de Portugal, quer os jovens de Macau que vão estudar para Portugal (…), de um modo geral, têm uma melhor preparação do que aqueles que obtêm aqui o curso em língua chinesa (…). Mas também vêm advogados de Portugal que têm experiência, preparação e tinham boas notas, mas às vezes não passam no exame de admissão.

– O curso de Direito da Universidade de Macau tem sido alvo de muitas críticas ao longo dos vários anos. Está a melhorar?

J.N.V. – Neste momento, há condições para melhorar. Foi um erro terem posto um académico de nível indiscutível — o anterior diretor da Faculdade [John Mo] —, mas que não é de cá e não teve sensibilidade, e fez algumas modificações que não foram bem sucedidas.  Não diria que foram um total desastre, mas a maneira como funcionou mal fica logo a ver-se por ter acabado com o reconhecimento [do curso de Macau] pela Universidade de Coimbra.

– Costuma apontar vários problemas que afetam a justiça todos os anos, como a falta de magistrados. Os problemas mantêm-se?

J.N.V. – Mantêm-se e alguns agravaram-se. (…)  A minha análise não é muito otimista. Não se tem caminhado no sentido que eu gostaria. Gostaria que houvesse mais respeito pelas pessoas, gostaria que os tribunais funcionassem de forma competente (…). Houve melhorias com o aumento substancial do número de magistrados, houve melhorias na marcação de audiências que, em vez de demorarem dois anos, só demoram um ano ou até um pouco menos, mas continua a ser tudo muito lento. (…) Precisávamos de decisões mais profundas, de mais pensamento jurídico, e muitas decisões tomadas pelos tribunais nem sempre são absolutamente injustas, mas são pobres em raciocínio, em fundamento. (…) É evidente que o número de magistrados da Última Instância é insuficiente. É uma experiência que tem corrido mal, até porque depois cria estas situações em que os funcionários mais responsáveis da Administração [envolvidos em processos judiciais] só têm um grau de jurisdição (…). Não haverá muita gente a dizer o contrário, mas pode haver, por conveniência política, interesse em manter tudo controlado. Com três juízes, é mais fácil adivinhar-lhes o pensamento e adivinhar o caminho que tomam. Na Segunda Instância, tem havido algum aumento [do número de magistrados], mas as decisões estão a sofrer grandes atrasos. Na Primeira Instância, há julgamentos mais próximos e há um pouco mais celeridade, mas não muita no andamento dos processos. Mas os funcionários não são suficientemente experientes (…). Os funcionários não estão devidamente apetrechados com os conhecimentos necessários para acorrerem ao serviço (…).

– Temos tribunais verdadeiramente independentes do poder executivo, dado que, por exemplo, os magistrados ainda são nomeados?

J.N.V. – Em Hong Kong, os magistrados são todos nomeados e são mais independentes do que em Macau. A questão pode pôr-se e relação aos que não são do quadro local — são nomeados por comissões de dois anos e pode dar a imagem de que não serão independentes, porque se querem continuar cá têm de fazer concessões. Isso nem sempre é justo.  Eu, por exemplo, defendo que os magistrados locais não deviam ser nomeados para a vida logo no primeiro ano de acesso à magistratura — é um erro (…). A verdade é que a lei estabelece um período de dois anos para avaliação e passaram-se muito anos sem avaliação nenhuma (…). A impressão que passa para a sociedade é de que nos casos civis é possível obter uma justiça mais sintonizada com a sociedade. Os processos-crime — os mediáticos — têm uma má receção na sociedade, porque as pessoas têm a impressão de que já está muito determinado o caminho, porque há uma influência — um soft power. Tenho visto decisões das quais discordo profundamente até ao mais fundo do meu ser, por haver desproporcionalidade entre a violação da lei e a pena que é aplicada. Há bagatelas, que têm pouquíssimo significado social, mas que são punidas de uma maneira bárbara, com uma severidade que não se justifica. Temos um sistema que pune o homicídio com 20 anos de cadeia. E um homicídio é um crime que repugna a sociedade — talvez o mais grave na escala dos crimes. (…) Num crime de sangue violento, com barbaridade, um indivíduo (…) arrisca-se a apanhar 20 anos ou pouco mais, não faz muito sentido que um indivíduo que cometeu uma infração qualquer que se traduz em meia dúzia de patacas ou um ou dois milhões de patacas leve uma pena que se aproxime da punição do homicídio. Tenho visto isto nomeadamente em condenação de funcionários públicos por delitos que não são graves. (…) Há uma área muito difícil em que o direito se presta a injustiças, que é a área do direito administrativo — o direito administrativo de Macau não evoluiu no mesmo sentido que a origem dele (a matriz portuguesa). Hoje em dia, nos tribunais administrativos portugueses faz-se justiça (…). Em Macau, é muito difícil. O direito evoluiu muito pouco e a administração tem uma posição de prevalência muito grande. Vê-se, por exemplo, neste caso da Lei de Terras, em que a lei diz o que diz, e os tribunais apenas se limitam a verificar se a lei é observada ou violada. Pela letra da lei, os tribunais têm de aplicar a lei.  (…) Neste momento, o direito administrativo é muitas vezes um óbice a que se faça justiça — não vejo um caso em que o tribunal tenha aplicado soluções de equidade (…).  Quando o conflito é entre os particulares e a Administração, a Administração ganha sempre. Isso cria um sentimento muito mau de justiça ou de injustiça e há quem diga que isto só prova que o sistema de Macau não presta.

– Temos a correr em tribunal o caso contra o antigo Procurador de Macau, Ho Chio Meng. Dada a posição importante que ocupou durante tantos anos, o que significa este processo, no contexto da justiça do território?

J.N.V. – Penso que houve muitas coisas que correram mal para o sistema. (…) É muito mau que o nosso sistema permita que um funcionário com a responsabilidade do Procurador – que foi Procurador durante 15 anos, e antes também tinha exercido outros cargos de responsabilidade — possa ter alegadamente cometido tantas infrações sem ser detetado por ninguém. (…) É mau para o nosso sistema que fica desacreditado. (…)  Depois, a sensação que passou para fora desde o início é de que havia o propósito de condenar o ex-Procurador de qualquer maneira — com argumentos que foram usados durante o julgamento, mas, por aquilo que se respirou e transpirou para o público, há muita coisa que não está estribada em provas irrefutáveis. O ex-Procurador poderá vir a ser vítima do cargo que ocupou e dessa ideia de mostrar que nos tribunais não há ninguém acima da lei e que os tribunais repõem a legalidade à sua maneira.

– Também com o anterior secretário para as Obras Públicas e Transportes, Ao Man Long, muitos comentaram como era estranho que, durante tantos anos, tivesse havido tantas concessões irregulares de terrenos, sem que se desconfiasse…

J.N.V. – Se calhar não era bem assim. De qualquer maneira, custa-me aceitar que um assassino em série apanhe 20 anos e, por muito má quer seja a conduta do ex-secretário, este esteja condenado a 29 anos. Sai da lógica do sistema.

– Casos como este — o do ex-Procurador ou o do antigo secretário — mostram que o poder judicial é dependente do poder executivo?

J.N.V. – Que há pessoas com essas opiniões, há. (…)  A verdade é que é mau termos essa imagem em setores de opinião e haver muita gente que pensa que o sistema não funciona. O problema não está nas leis e nos atos, mas nas pessoas que interpretam o sistema e muitas vezes o interpretam mal.

– De que mudanças precisávamos?

J.N.V. – Precisávamos de tudo melhor… Mais magistrados e de melhor qualidade.

– Voltando ao início desta entrevista, nessa reunião que deverá ter no próximo mês com o bastonário da Ordem dos Advogados, ficaremos mais perto de ver o protocolo retomado?

J.N.V. – Não faço ideia. O que eu gostava era que a questão de Macau, da inscrição dos requisitos, não fosse posta em termos de reciprocidade. Dos 370 advogados, seguramente mais de 100 estão inscritos em Portugal. Se fossem para lá [Portugal] mais 200 [de Macau], eram uma gota de água no oceano — em 30 mil, não há problema nenhum. 

– Pode então levar-se mais tempo, caso a Ordem dos Advogados de Portugal opte pela total reciprocidade?

J.N.V. – Podemos. Agora se Portugal disser que se nós queremos fazer um exame, então em Portugal também se vai sujeitar a exame, se se justifica, tudo bem. Mas talvez não se justifique. (…). 

Luciana Leitão

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