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“Vamos sentir um pouco o aperto”

O advogado Rui Cunha criou há cinco anos uma fundação em nome próprio. O objetivo: assegurar um espaço de reflexão sobre o Direito de Macau e promover os valores locais – nomeadamente, nas artes, com uma programação cultural regular. Fê-lo alegando receios de uma descaracterização do Direito da região. Hoje, diz-se optimista. Ainda que admita “beliscões”, que vê como necessários à manutenção da estabilidade.

– Em 2012, no momento em que estabeleceu a Fundação Rui Cunha, dizia que pressentia que o Direito de Macau estava em perigo. Ainda sente o mesmo? Algo mudou?

Rui Cunha – Efetivamente, algo mudou. Houve uma evolução um pouco positiva, porque hoje temos uma visão sobre o futuro de Macau que não tínhamos logo a seguir à transição. Não se sabia muito bem o que iria acontecer e qual seria o futuro do Direito e do sistema legal que aqui estava em vigor. Hoje, muita coisa mudou. A República Popular da China, de que Macau faz parte, definiu muito claramente um papel para Macau com a sua autonomia e com interesse em manter o sistema existente, como plataforma que é para os países lusófonos. Dentro dessa linha, podemos hoje estar um pouco mais sossegados. Se destinados a ser uma plataforma para os países lusófonos, isso significa que as raízes da sociedade civil serão mantidas para haver essa conexão. Quanto às dúvidas e receios que tinha, alguns ainda mantenho. Continua a manifestar-se uma carência de um estudo mais profundo do sistema legal para que ele perdure para além de 2049, ou outra data no futuro. Quanto mais fortes forem as nossas raízes, e se mostrarmos que temos um sistema legal capaz, não haverá razões nenhumas para que a República Popular da China procure modificar.

– A identidade do Direito local foi sempre uma questão problemática.

R.C. – Quando comecei a pensar na criação do Centro de Estudos, com a criação da Fundação para dar suporte a esse centro de estudos, a grande dúvida que tinha era quanto nós seríamos capazes de resistir a uma absorção quase imediata em relação ao sistema legal da China. A China tem feito um esforço extraordinário de montagem de um sistema muitíssimo atualizado para estar a par de todos os outros países do mundo. O exemplo saiu em Março quando lançaram os princípios de um Código Civil. Paulatinamente vão começar a montar todo o sistema civilístico da China. Se Macau não mostrasse que tinha um sistema capaz, seria fácil a tendência de absorver o novo sistema. Era pena, embora o sistema para o qual a China está a caminhar seja um sistema moderno, mais próximo do nosso sistema do que do anterior sistema que eles tinham e da ideologia que lhe estava subjacente. Estou mais optimista, embora continue a não haver suficiente estudo e difusão do Direito de Macau.

– Usar a expressão Direito de Macau não é algo completamente incontestado. Ainda há muito quem olhe para o Direito de Macau e veja a matriz portuguesa e até um obstáculo a que haja um aprofundamento dessa tradição.

R.C. – Não vejo que neste momento tenhamos de ter essa preocupação. A linha orientadora do sistema que a República Popular da China está a seguir é muito próxima da nossa raiz. Não temos de ter receio que haja uma subversão total dos nosso princípios básicos. Eles também mostram que pretendem seguir uma raiz de um Direito Continental, não o anglo-saxónico. Isso basta para dar um certo sossego. Nós poderemos ser um sub-Direito do Direito chinês. Hoje há perspetivas mais animadoras de que o sistema de Macau tem viabilidade, tão logo ele consiga mostrar que tem vitalidade e está adaptado à sociedade em que todos vivemos. A experiência de Macau dos últimos 15,17 anos também deu à população de Macau a consciência de que faz parte da China mas é diferente. A população chinesa de Macau é ciosa dos seus valores e da sua diferença. É um passo grande no sentido da definição de uma identidade própria. Isso não é expresso em manifestações de rua, mas aqui e acolá vemos que há esse sentimento.

– Também no Direito, é precisa uma abordagem mais descomplexada em relação às heranças de Macau?

R.C. – Penso que sim. Nós temos o cuidado de sempre nos referirmos ao Direito de Macau. É preferível falar em Direito de Macau, que hoje não é exatamente o Direito que existe em Portugal. Cada um seguiu o seu percurso diferente nas últimas décadas. Macau evoluiu no sentido de uma adaptação mais profunda à sociedade local e Portugal, por fazer parte de um bloco com outra ideologia, seguiu a União Europeia. Hoje não há uma completa identidade entre o Direito de Macau e o Direito português. A raiz está lá, mas o Direito existe para fazer prosseguir os interesses de uma sociedade. Vai-se formando um Direito de Macau, que lhe é próprio.

– Falando no exemplo de um trabalho legislativo recente, a revisão da lei de combate à droga, há preocupação de que o Direito de Macau esteja a ir ao arrepio das tendências internacionais e de que isso possa ser prejudicial?

R.C. – Todos nós, os praticantes de Direito, temos de ver a sociedade que é Macau, os valores que são de Macau, e quando seja necessário fazer as adaptações. Aos aplicadores de Direito cabe fazer cumprir as normas. Aos colaboradores do Direito cabe olhar, ver  e muitas vezes criticar, apontar caminhos que podem ser úteis no futuro para o Direito de adaptar à sociedade que existe. Um exemplo é a situação dos crimes sexuais. A vida moderna é diferente e a censura que é preciso aplicar a determinadas situações é diferente de há 50 anos. Citando uma polémica recente, da célebre Lei de Terras, este é um caso típico em que se fez uma lei, se aplicou uma lei tal como estava e em cujos efeitos, não só os destinatários dessa lei mas outras pessoas veem que algo não está certo. Pode ser que seja necessário mudar. Não sou apologista de que a cada mudança de vento se mudem as leis – estamos a passar o período de amadurecimento, de todos procurarmos encontrar que mudanças há que fazer numa realidade com a qual sentimos que há algo de inconfortável.

– Sente isso de uma forma generalizada em relação à Lei de Terras, ou que esse desconforto parte sobretudo dos sectores interessados?

R.C. – Pela minha sensibilidade, julgo não estar muito errado de que há um sentimento comum em todos os estratos da sociedade de hoje de que há necessidade de se encontrarem soluções que possam minimizar ou modificar a rigidez com que aquele normativo foi escrito e está a ser aplicado.

– Da parte de alguns sectores da sociedade até se vê algum entusiasmo com a possibilidade de a utilização dos terrenos revertidos ser feita para fins sociais como a habitação pública.

R.C. – Não sou tão obcecado com a questão da habitação, e com a questão da habitação pública. Sei que todos têm o direito fundamental de ter a sua habitação, mas não sinto que seja imperativo de todo o Estado providenciar habitação às pessoas. Percorrendo toda a história, não encontramos nenhum sítio onde o Estado se encarregasse de dar uma habitação a toda a gente. Não há país nenhum no mundo onde não haja sem abrigo ou pessoas desfavorecidas. A construção de habitação pública deve ser um objetivo, mas não pode ser algo de obcecante.

– A questão da habitação era um exemplo de contraponto ao que me estava a dizer, havendo sectores sociais que sentem que houve de alguma forma uma disponibilização de terrenos que foi ineficaz, não havendo aproveitamento ou cumpridos os desígnios da entrega de terrenos, que seria também para algum benefício social. 

R.C. – Dou-lhe um exemplo corriqueiro, mas se lhe der um bife bem passado e depois não lhe der faca e garfo, nem autorizar o uso das mãos para o comer, ele fica à sua frente – não pode fazer nada. Dando um terreno e não aprovando planos que foram submetidos a tempo, como se pode exigir que este seja aproveitado?

– Entende que houve má gestão ao longo dos anos?

R.C. – Houve quase uma imobilização de tudo quanto é construção devido aos problemas acontecidos em 2006, 2007 [caso de corrupção envolvendo o antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long]. A partir dali, ninguém mais conseguiu uma licença de construção. Não há o plano diretor anunciado há tantos anos. Não há orientação. Aqui, poderia haver sempre um tempero para corrigir a rigidez. Concordo que à inação que houve – há muitos casos justificadíssimos de reversão de terrenos – aquele normativo aplica-se e bem. Mas quando houve uma inação não sendo do concessionário, há um pouco de injustiça em penalizá-lo. Devia haver uma porta aberta para se contemplar caso a caso.

– Vê casos de instrumentalização das leis e processos administrativos com vista a cumprir objetivos políticos? Colocava-lhe dois exemplos. Num caso, há três anos, a Lei de Proteção dos Dados Pessoais esteve na base de uma acusação contra membros políticos ativos da sociedade que trabalham com o objetivo de ocupar espaço na Assembleia Legislativa. Este ano temos um processo eleitoral em que a lei foi revista e há uma atuação da Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa que tem feito várias pessoas recear uma tentativa ilegítima de coarctar a liberdade de expressão. Como vê estas duas situações?

R.C. – Eu diria que os exemplos que vêm de fora, e principalmente de proximidade, acabam por afetar a atuação de quem é responsável aqui em Macau. Quando ocorreu o célebre movimento Occupy Central em Hong Kong, que se arrastou por um período bastante longo com prejuízos enormes para Hong Kong, previ logo que Macau ia pagar um certo preço por isso. Daí a tentativa de se acautelar em Macau a possibilidade de se gerar esse tipo de atuações que poderiam prejudicar com extrema gravidade a economia, toda ela já muito periclitante e mono-dependente de uma atividade. Julgo haver um certo rigor na aplicação e definição de certas coisas. Tenho lido sobre o facto de não se deixarem entrar certas pessoas em Macau. Estamos num período pré-eleitoral. É um pouco como o SARS [pneumonia atípica]: há que vacinar toda a gente ou evitar que o vírus entre. Tem de se reconhecer que estas diretivas são um pouco restritivas dos direitos de expressão. Podem fazer parte de uma estratégia de preservação da estabilidade de Macau. Às vezes, pequenas coisas são o rastilho de coisas mais graves. No entanto, a população de Macau é por natureza uma população pacífica, procura a harmonia do meio social, possivelmente característica herdada também de 400 anos de período colonial em que as coisas eram feitas a nove mil quilómetros de distância. Há uma acomodação das pessoas. Esse rigor poderia não ser levado tão longe, mas costuma dizer-se que cautelas e caldos de galinha nunca fazem mal. Talvez por isso vamos ter um período em que vamos sentir um pouco o aperto. Seja a nível local, seja a nível do país, não é conveniente, não é saudável para todos que haja questiúnculas locais que possam refletir-se noutros locais da China. 

– Vê como uma inevitabilidade esse beliscão nos princípios? Concorda?

R.C. – É difícil dizer. Como não sou muito avançado nas ideias, diria que gostaria que não fosse tão rigoroso, mas, se tanto é necessário – e não conheço dados que possam existir, sinais, fontes de informação sobre planos para criar em Macau alguma agitação. Eu ainda sou da geração em que as minhas orelhas e dos meus colegas estavam ao dispor dos professores de vez em quando para agarrar e torcer. A gente não se queixava, nem os pais iam bater nos professores por isso. Se o beliscão é um beliscão suave, suficiente para desmotivar algum excesso, pode ser bom para todos nós. Se é muito forte, ou injustificado, já manifestaria o meu desagrado em que isso acontecesse e pediria cautela. Encontrar o ponto certo em que tudo se pode mover não é tarefa fácil. Alguma prevenção de problemas pode ser bom. Numa sociedade, a liberdade total dá naquilo que estamos a ver em alguns países e em excessos de democracia.

– Falava-me de haver uma incipiente reflexão sobre o Direito local, pouco participação nesta atividade que a fundação desenvolve, mas além desta reflexão não é preciso um trabalho de alerta, de observatório?

R.C. – É sempre bom haver quem esteja atento e que faça uma apreciação do que está ocorrendo em todos os sectores da sociedade. A observação e o alerta podem servir de guia para as soluções melhores que a sociedade exige. Eu penso que é preciso muito mais trabalho sobre o Direito de Macau. Não é fácil, porque não há também aqui matéria-prima suficiente para trabalharmos – docentes, estudiosos, quem se disponha a fazer publicações. A difusão que procuramos fazer é uma atividade não-lucrativa, tendencialmente para dar prejuízos. Não se pode esperar que apareça uma editora a fazer o que é necessário fazer com prejuízos. É um sector onde o poder público podia fazer mais e promover mais essa área. Era um serviço que se fazia à sociedade. Enquanto não tivermos suficientes reflexão, estudo e difusão, nunca conseguiremos evoluir com segurança.

Maria Caetano

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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