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O princípio do fim de Lai Chi Vun

A pequena povoação de Coloane está a mudar. Os primeiros estaleiros navais vieram abaixo – outros se seguirão. A última memória de uma indústria histórica de Macau dará lugar a planos que se mantêm indefinidos.

Dos 11 estaleiros navais da povoação de Lai Chi Vun, sobram nove, por agora. A primeira demolição do conjunto de estruturas instaladas em Coloane na década de 1990, aquando da transferência das indústrias navais antes situadas na península de Macau, teve lugar na última quarta-feira, com a Direção dos Serviços de Assuntos Marítimos e de Água (DSAMA) a invocar perigo para a segurança pública no avançado estado de degradação das oficinas que deram em 2005 pela última vez uma embarcação à água.

Os trabalhos de demolição arrancaram poucos dias depois de a Associação de Construtores de Barcos de Macau-Taipa-Coloane, com o apoio de outras organizações de defesa do património, ter iniciado uma petição pública pedindo o seu adiamento, para que a zona possa ser alvo de uma avaliação quanto ao seu valor patrimonial pelo Instituto Cultural (IC) de Macau. O objectivo era o de garantir uma preservação maior do conjunto, numa altura em que o IC garantiu já para a sua tutela um dos estaleiros, que será preservado.

“Achamos lamentável a rápida demolição dos estaleiros. A Povoação de Lai Chi Vun e os estaleiros constituem relíquias arquitectónicas e heranças culturais de extremo valor, e a sua demolição será algo irreversível. O mais importante de tudo é a composição dos estaleiros, se apenas restarem dois ou três não haverá forma de mostrar a dimensão que outrora tiveram, sendo esta extremamente reduzida”, afirma Nero Liu, presidente da Associação dos Embaixadores do Património de Macau (AEPM), que se associou à petição e entende que “demolir não é a única solução”.

“O que todos querem é detalhes sobre os perigos à segurança pública, assim como a direção planeada para o futuro de Lai Chi Vun. Para além disso, as manutenções e reforços necessários darão ao Instituto Cultural tempo para decidir sobre se deverá ou não dar início às avaliações do estatuto de património cultural”, explica Liu.

Desde o Verão do ano passado que os lotes onde estão os estaleiros se encontram vedados dado o perigo de queda de cobertura e de outras partes das estruturas, mas não houve qualquer iniciativa de reforço destas. Os planos para o local permanecem indefinidos e, terraplanado o solo onde se erguem as oficinas, a DSAMA fala no lançamento de um concurso público para novo planeamento da zona. 

Já em 2012, a Direção dos Serviços de Solos e Obras Públicas tinha iniciado um plano para o local, sem que este seja hoje conhecido. Vai agora abrir o reordenamento da zona a propostas do exterior. Pretende-se “ponderar, de forma global, o arruamento e instalações públicas da respectiva zona, atendendo às necessidades de desenvolvimento sustentável da vila de Coloane”, segundo indicou a DSAMA em nota pública da passada quarta-feira.

“Na realidade, o futuro que estes estaleiros enfrentam é a demolição, não existe reconstrução. Mas o Governo não tem qualquer plano”, alega Tam Chon Ip, da Associação de Construtores de Barcos de Macau-Taipa-Coloane. Morador de Lai Chi Vun, descendente de construtores navais e colaborador frequente de organismos públicos na promoção do conhecimento sobre a cultura naval de Macau, o arqueólogo esperava no último sábado evitar a destruição. “O nosso plano é preservar todos os estaleiros”, dizia Tam, liderando uma visita guiada ao local que ainda não denunciava a chegada das gruas e escavadoras.

À porta do estaleiro Man Kei, o proprietário Cheong Chi Weng prenunciava o mesmo destino. “Não há nada a fazer. É uma pena demolir isto tudo, e vai contra o que o Governo tinha dito no princípio. Nós dedicámos tanto trabalho nos últimos anos”, lamentava, sem alternativas à demolição, mas contestando a alegação de que os ocupantes dos estaleiros arrendados pelos Serviços de Assuntos Marítimos não tenham ao longo dos anos custeado quaisquer reparos.

“Temos vindo a investir todos os anos na manutenção – 100 mil, 200 mil patacas, tudo sem problema. Desde que haja capacidade para isso, faço-o”, diz. As reparações, diz, acontecem sobretudo desde 2009, ano em que a morte do proprietário de um estaleiro vizinho, o Sam Hong, levou à caducidade do arrendamento do espaço e impossibilidade de viúva e filhos se manterem como ocupantes. 

“O Governo não referiu durante quantos anos irá renovar as autorizações [de ocupação temporária dos estaleiros], nem garantiu que irá sempre renová-las. Temos de as renovar todos os anos, e a qualquer altura podem ser rejeitadas”, diz Cheong. A incúria dos ocupantes foi uma das razões alegadas pela DSAMA para a reversão dos lotes no fim dos respectivos contratos. Atualmente, quatro situações de arrendamento estão a ser avaliadas para renovação.

Um outro estaleiro, juntamente com duas outras construções provisórias do conjunto, ficará nas mãos do Instituto Cultural. “Após a conclusão da transferência [dos lotes], o IC irá levar a cabo metodicamente os trabalhos de revitalização, visando apresentar principalmente o padrão de vida da povoação do tempo passado e a arte técnica mais antiga da indústria de construção naval, a que se introduz elementos culturais e criativos”, explica o instituto sobre o destino a dar ao único estaleiro a que foi assegurada a preservação.

Mas, as expectativas criadas ao longo dos últimos anos entre habitantes e ocupantes da povoação eram maiores. “O Instituto Cultural tinha dito que queria conservar [o conjunto], que este era um caso raro de continuidade neste tipo de estaleiros de madeira do sul da China”, recorda Cheong Chi Weng. “A nós, isto não trás benefícios. Mas vir aqui ver os estaleiros e relembrar que antigamente cada um deles era capaz de alimentar uma família é algo que transmitia um grande sentimento de satisfação”, junta.

Um grupo de oito ocupantes de estaleiros sem atividade contrasta hoje com a história de uma indústria pujante – uma das principais de Macau no final do século XIX – e que chegou a empregar mais de um milhar de pessoas. Com a demolição deste último reduto da história local da navegação, muda também Lai Chi Vun, onde aos fins-de-semana há pintores de aguarelas rendidos aos pormenores de chapas onduladas e vasos floridos em casas precárias, e os cães se passeiam lentamente a travar os poucos carros que atravessam o lugar.  

Maria Caetano

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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