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“Tolerância zero” ao abuso sexual de menores

Com pouco mais de 191 mil crianças e adolescentes, Cabo Verde registou na última década, em média, um atendimento semanal relacionado com violência sexual contra menores. São números que preocupam as autoridades que aprovaram um plano nacional de ação para declarar “tolerância zero” aos abusos sexuais de crianças e adolescentes, desde logo ensinando-os a identificarem potenciais abusadores e a protegerem-se deles.

Em novembro, na pequena ilha do Maio, em Cabo Verde, em plena apresentação de um livro sobre pedofilia e abuso sexual de crianças em que participavam, entre outras entidades, a ministra da Educação, uma mãe tomou a palavra para denunciar publicamente um professor por alegados abusos sexuais da sua filha menor.

A mãe explicou, em visível estado de desespero, que a direção da escola e o Instituto Cabo-Verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA) tinham conhecimento da denúncia, mas nada faziam.

Na sequência da denúncia, o professor foi suspenso e posteriormente detido, tendo-lhe disso sido decretada prisão preventiva, o que motivou uma manifestação de solidariedade por parte dos alunos, que pediam a libertação do docente. 

Foi este caso que o primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, usou para expressar o seu choque relativamente à realidade dos abusos sexuais a crianças e adolescentes, um exemplo de como, em certa medida, parece existir uma certa “desculpabilização cultural” dos abusadores.

Por isso, durante a apresentação pública do plano nacional de combate aos abusos sexuais, Ulisses Correia e Silva foi perentório ao afirmar a política do executivo de “tolerância zero” relativamente aos abusos sexuais de crianças e adolescentes, colocando a ênfase na necessidade de a sociedade cabo-verdiana tomar consciência da gravidade de um problema que configura crime.

Denúncias quadruplicaram 

O plano, que contempla 33 ações e 115 atividades num investimento estimado de 27,7 milhões de escudos (pouco mais de 268 mil dólares), é sustentado num estudo elaborado, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que revela um aumento das denúncias deste tipo de crime nos anos mais recentes.

O estudo, que aponta a dispersão das fontes dos dados como um obstáculo à existência de informações sistematizadas e de confiança sobre todas as ilhas, revela que o Programa de Emergência Infantil do ICCA viu quadruplicar o número de denúncias quando comparados os períodos 2005-2009 com 2010-2014.

Verificou-se igualmente um aumento das queixas através do “Disque Denúncia” e da delegacia de Saúde da Praia, que completam o trio de instituições através das quais as queixas chegam às autoridades.

Num país com uma população de pouco mais de 191 mil crianças e adolescentes, registou-se na última década em média um atendimento relacionado com violência sexual por semana, sendo que no triénio que terminou em 2014 essa média subiu para 3,5 atendimentos semanais.

As raparigas menores de 12 anos são as principais vítimas de abusos sexuais, que decorrem sobretudo na ilha de Santiago, sendo que as ilhas do Fogo, Sal, São Vicente e Santo Antão registam uma tendência crescente. 

A iniciação sexual precoce e sem uso de preservativo em 44 por cento dos casos agravam um contexto, em que se regista grande morosidade e fracos níveis de resolução no julgamento dos crimes sexuais.

Dados ainda não disponíveis, mas avançados aos jornalistas pela presidente do ICCA, Maria José Alfama, dão conta de uma ligeira diminuição das queixas nos serviços deste instituto entre 2015 e 2016, passando de 136 para 127 queixas.

Os dados estatísticos sobre crimes sexuais fornecidos pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial para o último triénio apontam a abertura anual de 450 novos processos por crimes sexuais.

No ano judicial de 2015/2016 foram registados nos serviços do Ministério Público 504 crimes sexuais, sendo que o abuso sexual de crianças corresponde a 34% e os abusos sexuais de menores entre 14 e 16 anos a 9% do total de crimes sexuais.

O abuso sexual de crianças correspondia nesse ano a 23 por cento dos processos pendentes na justiça cabo-verdiana.

Os agressores são habitualmente o pai, o padrasto, o tio ou irmão ou ainda o vizinho, o amigo de família ou o padrinho. 

A promiscuidade habitacional em resultado da pobreza foi apontada como estando na origem de casos de abuso sexual, bem como a situação de desemprego dos pais que enviam as filhas procurar formas de subsistência familiar ou das mães que incitam as filhas menores a envolverem-se com adultos com emprego fixo.

Muitos dos casos são perpetrados por adultos com histórico de abuso de álcool e o estudo identifica uma “tendência para a não denúncia de casos” relacionada com a dependência económica da família em relação ao agressor, com a preservação da moral familiar e a salvaguarda da vítima do estigma com vista a um futuro casamento, muitas vezes com o próprio agressor.

Especial atenção ao turismo 

O estudo relaciona ainda a exploração sexual de crianças e adolescentes com o turismo, com “indícios desta prática nas ilhas do Sal e Boavista”, o que levou à elaboração de códigos de conduta ética, ainda desconhecidos por alguns operadores turísticos.

O fornecimento de informações aos turistas sobre espaços de exploração sexual de crianças por taxistas e rececionistas de hotéis é uma prática comum identificada pelo estudo. 

O primeiro-ministro garantiu que o Governo está atento ao turismo, com programas preventivos envolvendo os operadores.

“O turismo sexual em Cabo Verde não é tolerado, mas sabemos que há comportamentos que ultrapassam a capacidade de intervenção e de fiscalização do próprio Estado. A nossa atitude é proativa a nível interventivo, mas também a nível punitivo para que não faça escola este tipo de crime”, assegurou.

33 ações contra os abusos sexuais

É neste contexto que surge o plano de combate à violência sexual em Cabo Verde, que prevê, entre outras medidas, a criação de um sistema de notificação obrigatória, o reforço da rede de atendimento e alargamento para os 18 anos dos abusos sexuais como crime público.

O programa conta com o apoio da agência das Nações Unidas para Infância (UNICEF), envolve 15 organizações cabo-verdianas e será coordenado pelo Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA).

O plano prevê, entre outras medidas, educação sexual nos jardins-de-infância a partir dos quatro anos, bem como o desenvolvimento de projetos sobre saúde sexual e reprodutiva destinados a adolescentes e jovens.

Maria José Alfama, presidente do ICCA, defende a importância de promover a participação ativa das crianças e adolescentes e destaca que o plano prevê programas de educação para as famílias, fomento do atendimento às crianças e adolescentes fora do horário escolar, e uma campanha de prevenção da violência sexual e de divulgação da linha “Disque Denúncia”.

Implementar um sistema de notificação obrigatória nas escolas e serviços de saúde, formar as equipas dos serviços de saúde, bem como os professores das escolas públicas no atendimento, prevenção, identificação e gestão da violência sexual são outras medidas contempladas. 

O programa identificou também a necessidade de aperfeiçoar a legislação sobre esta matéria, nomeadamente através da uniformização da faixa etária das vítimas, estendendo os seus direitos de proteção até aos 18 anos.

Categorização dos crimes sexuais como crime público até aos 18 anos, julgamentos com urgência (24 a 48 horas) nos processos envolvendo crianças e adolescentes, separação imediata da vítima do agressor e atendimento aos agressores sexuais são outras medidas do plano.

Maria José Alfama apontou também como fundamental a aceitação dos registos das queixas feitos pela Polícia Judiciária (PJ) para evitar a repetição do depoimento das vítimas nas diversas instâncias.

Jacob Vicente, psicólogo e autor do livro “Gritos no Silêncio. Pedofilia, abuso sexual e sociedade cabo-verdiana” classifica os abusos sexuais em Cabo Verde como uma “calamidade social” que está a afetar de “forma muito grave” uma sociedade cabo-verdiana “muito confusa” e sem informação sobre estes assuntos e conceitos.

O especialista regista também um aumento “de forma escandalosa” de crianças nas ruas da Praia e nas ilhas do Sal, Boavista e São Vicente, o que as torna “presas bastante fáceis”. 

Cristina Fernandes Ferreira-Exclusivo Lusa/Plataforma

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