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A discriminação silenciosa num Brasil dito inclusivo

Mónica Matos já se habituou “àquele olhar” quando usa determinadas roupas ou entra em certos locais. “Tem gente que não para de olhar”, como se perguntasse “está aqui a fazer o quê?”, conta a brasileira de 30 anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2015 mostraram que 53% dos 203,2 milhões de brasileiros se declaram negros ou pardos. 

O país tem a segunda maior população negra do mundo, depois da Nigéria, mas ela ainda é uma minoria política, num país sem um único ministro negro.

A advogada e doutoranda de Direito Constitucional Comparado na Universidade Paris 8, em França, leciona voluntariamente sobre minorias no Centro Universitário de Brasília, onde docentes negros são raros. Por isso, conta, quando é apresentada na universidade como docente, “muda como as pessoas se dirigem a você”.

A propósito do Dia Nacional da Consciência Negra, Mónica recordou que em criança ouvia “não vou brincar com você, porque você é negra”, e que acreditava existirem profissões que lhe estavam vedadas, como hospedeira, porque “falavam que ‘aeromoças’ eram bonitas”. “Cada vez que conversamos experimentamos mais um”, respondeu, falando de casos de discriminação na família. Vivendo próximo a senadores e numa zona com poucos moradores negros, em Brasília, Mónica ouviu o pai, diplomata, relatar quando foi questionado se era motorista. A mãe foi tratada como empregada de limpeza na sua casa. Mas um dos episódios que mais a chocou foi ouvir a avó, com poucos estudos, comentar: “Deus não devia ter criado pessoas negras, porque não as vemos nos lugares de poder”.

Numa sociedade feita de imigrantes e conhecida por acolher bem os estrangeiros, contando inclusive com cerca de 20 milhões de refugiados, os resquícios de 400 anos de escravatura teimam em ressurgir. Após a abolição da escravatura, em 1888, foi implementada uma “política de branqueamento”, financiando a vinda de imigrantes europeus, porque entendia-se que tal tornaria o Brasil num país desenvolvido, contou. Enveredou-se por uma promoção da miscigenação para apagar os traços negros e indígenas. A medida, que durou até à primeira metade do século XX, traduziu-se na exclusão da população negra recém-liberta, que não conseguia empregos. Depois da II Guerra Mundial, o Brasil promoveu-se, inclusive, como exemplo de convivência harmoniosa entre raças, quando, na verdade, havia uma política de miscigenação por trás, explicou. Só em 1995, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, é que o país assumiu publicamente que existia um problema racial.

Por dia, em 2013, 29 crianças e adolescentes foram assassinadas no Brasil, sendo o número de vítimas negras quase três vezes superior ao de brancas, segundo um estudo da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais divulgado em junho.

“Há um problema de racismo histórico que está entranhado na sociedade brasileira (…) Uma pessoa negra e ainda por cima pobre certamente sofrerá racismo”, analisou Bernardo Sorj, professor titular da sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, comentando que embora exista algum racismo ideológico, não adquire as proporções que tem nos Estados Unidos. A miscigenação reproduz-se na integração cultural, com samba, carnaval e futebol sem fronteiras há quase um século, assinalou. Segundo o sociólogo, não faz parte da cultura brasileira “promover o ódio”, pelo contrário: “O Brasil tem uma das leis, senão a lei mais forte no mundo contra expressões racistas. Tem um crime inafiançável. Você é preso em flagrante com opinião racista”.

Em 2006, Bernardo Sorj e outros 119 intelectuais assinaram um manifesto contra as cotas raciais. Apesar de algumas universidades já as aplicarem desde os primeiros anos do milénio, só em 2012 é que elas se tornaram obrigatórias no ensino superior, reservando 50% das vagas para estudantes de escolas públicas e com baixos rendimentos e, dentro desse grupo, algumas para autodeclarados negros, pardos e indígenas. De uma universo académico com apenas 1,8% dos jovens autodeclarados negros a frequentar ou ter concluído o ensino superior em 1997, a percentagem aumentou para 8,8% no Censo 2011. Em 2014, foi ainda criada uma lei, com uma validade de dez anos, que reserva 20% das vagas em concursos públicos federais a negros e pardos.

Contrariamente a outras pessoas que defendiam o mérito acima de tudo, Bernardo Sorj estava contra as cotas, por causa da criação de “um tribunal de raça” com vista a definir legalmente quem teria esse privilégio, dando até o exemplo de dois gémeos em que um foi considerado negro e outro não. Só “a ideia de raça é uma ideia racista”, configurando essa medida “um racismo bem-intencionado”, que “quer incluir, mas que não deixa de falar de raça”, opinou. O sociólogo é, contudo, a favor de cotas sociais para pessoas desfavorecidas. Os nordestinos “também foram profundamente excluídos durante a história brasileira”, exemplificou.

Mónica Matos, cuja tese de doutoramento aborda a constitucionalidade das cotas raciais no Brasil, entende que a discriminação socioeconómica e a discriminação racial são problemas de origem diferente, logo devem ser tratadas diferentemente, porque, por exemplo, um pobre pode ir a um restaurante fino sem que a sua condição discriminatória na sociedade seja notada. Numa sociedade com um “racismo velado”, Mónica identifica “barreiras invisíveis que bloqueiam essa mobilidade social das populações negra, mestiça e indígena”. A seu ver, as cotas raciais são uma “questão de justiça distributiva e compensatória”, devido à dívida história no Brasil com a comunidade negra.

A doutoranda criticou quem alega que as cotas raciais no Estado são inconstitucionais, pois a lei determina o princípio da eficiência nos concursos públicos, mas que não refere o mesmo em relação às cotas para pessoas com necessidades especiais, concluindo: “é racismo”.

“Só sabe o que é ser negro quem é negro no Brasil. Principalmente eu, que sou mulher, negra e nordestina” e com cabelo “rastafári”, desabafou a secretária de Promoção da Igualdade Racial, vinculada ao Ministério da Justiça, emocionada.

Considerada a primeira juíza negra do país, Luislinda Valois teve de entrar com uma ação contra o Tribunal de Justiça da Bahia para conseguir o cargo de desembargadora, ganhando a causa.

No Governo desde junho, Luislinda Valois está a trabalhar para a “inclusão do povo preto na parte de comando do Brasil” e para a criação de cotas raciais no quinto constitucional (advogados e promotores que ocupam 20% dos cargos, como desembargadores, em certos tribunais, em lugar de juízes de carreira).

A secretária de Promoção da Igualdade Racial quer também “cotas para que negros integrem a seleção dos concursos”, para evitar fraudes.

A mesma responsável observou que o racismo vai-se modificando, estando hoje presente na Internet, onde “as pessoas acreditam que não serão vistas”, mas esses crimes “estão a ser apurados e descobertos”.

Andreia Nogueira

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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