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Mão no jogo

O Governo de Macau anunciou a intenção de proibir os trabalhadores do setor do jogo de entrarem nos casinos fora do horário de trabalho. Apesar de a intenção de os proteger do jogo patológico ser reconhecida, incluindo por associações dos trabalhadores do setor, levantam-se dúvidas sobre um eventual conflito com as liberdades individuais.

A chave para o problema assenta no fundamento da interdição. “Não basta a existência de um ou outro caso de jogo patológico que tenha sido noticiado ou alertado a opinião pública”, defende Jorge Godinho, professor da Universidade de Macau.

Para o especialista em Direito de Jogo, “poderá fazer sentido uma tal restrição, por força da lei, se tiver um real fundamento, o que deve ser empiricamente apurado, num número significativo de casos concretos”. Isto “de tal modo que dê base à sua aplicação a toda uma categoria de pessoas em causa, muitas das quais não terão esses problemas”, acrescenta.

António Katchi, docente do Instituto Politécnico de Macau (IPM), também concorda, apontando que “não se pode assim, sem mais nem menos, impedir que determinada pessoa exerça uma determinada atividade que até é legal”, pelo que “além de se poder levantar a questão de uma restrição desnecessária”, belisca “o princípio da igualdade”. “Pode eventualmente considerar-se também uma discriminação”, sustenta o constitucionalista, recordando que “as restrições à liberdade de uma pessoa só podem ser admitidas na medida em que sejam necessárias para defender outros direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Larry So, analista político e antigo professor do IPM, defende que “a ideia é boa”, dado que apoia-se em estudos de que os trabalhadores da ‘linha da frente’ dos casinos constituem a franja mais vulnerável à dependência do jogo, mas é, por outro lado, “monolítica”. “Nós não somos Singapura”, onde os residentes têm de pagar uma taxa para entrar nos casinos, uma medida que pretende dissuadi-los de jogar.

Além disso, Macau é “uma sociedade capitalista, onde se valoriza a liberdade individual”, sustentou Larry So.

Também Jorge Godinho diz haver “evidentemente um conflito entre uma tal restrição e a liberdade de ocupação dos tempos livres”, pelo que mais uma vez “tudo reside em saber se há um efetivo fundamento para uma total proibição, imposta a estas pessoas, de jogar em quaisquer casinos”.

Neste sentido, Katchi questiona: “Até que ponto é que se justifica uma atitude paternalista por parte das autoridades?” Isto porque “uma coisa é haver mecanismos para evitar que as pessoas se viciem ou para que deixem de jogar e para as proteger; outra é, de maneira preventiva, estar a querer impedir certa categoria de pessoas de ir jogar só porque se presume que elas eventualmente poderão viciar-se no jogo, isso aí talvez seja um pouco exagerado”, observa.

Comportamentos viciados 

Anualmente, o Instituto de Ação Social (IAS) divulga um relatório relativo ao “sistema de registo central dos indivíduos afetados pelo distúrbio do vício do jogo”, em que junta informação estatística sobre quem procura ajuda devido a problemas relacionados com o jogo, na tentativa de compreender hábitos e comportamentos. No ano passado, estavam registadas 147 pessoas, dos quais mais de 80% eram residentes. Aproximadamente 20% das pessoas empregadas que procuraram ajuda eram ‘croupiers’.

Em 2015, existiam 24.619 ‘croupiers’ em Macau, mas desconhece-se, de momento, se apenas quem dá cartas nas mesas de jogo vai ser afetado pela revisão da lei, até porque o Governo tem-se referido, em comunicados, de forma generalista, aos trabalhadores da indústria do jogo.

As dúvidas estendem-se a todo o teor da revisão, incluindo as sanções a serem impostas a quem violar a interdição. Tanto que, em outubro, numa intervenção no plenário da Assembleia Legislativa, a deputada e administradora-delegada da Sociedade de Jogos de Macau (SJM), Angela Leong, afirmou que esperava ver “esclarecidos” os objetivos da revisão, embora manifestando o seu apoio à medida.

Angela Leong afirmou que o Governo indicou que pretendia “fazer todo o possível” para apresentar o diploma ao hemiciclo antes do termo da atual sessão legislativa – em agosto do próximo ano. A Direção de Inspeção e Coordenação dos Jogos (DICJ) indicou, em resposta escrita, disse “não haver um calendário”, mas o relatório das Linhas de Ação Governativa para 2017 diz estar previsto para o próximo ano.

Na mesma resposta, a DICJ refere que tem vindo a recolher opiniões de todo o espectro – desde trabalhadores, às operadoras de jogo, às associações –, uma tarefa que vai continuar, reconhecendo que “há ainda muitas preocupações e interrogações” por parte dos funcionários dos casinos.

Em vez de se estar a “criar a presunção, à priori, de que haverá maior probabilidade de os trabalhadores dos casinos ficarem dependentes, talvez seja melhor desenvolver outros mecanismos de apoio àqueles que revelem sinais de estar a criar dependência”, defende Katchi.

Ao abrigo da lei n.º 10/2012, que condiciona a entrada, o trabalho e o jogo nos casinos, o diretor da DICJ pode interditar a entrada em todos os casinos, ou em apenas alguns, pelo prazo máximo de dois anos, a todas as pessoas que o requeiram ou que confirmem requerimento apresentado para este efeito por cônjuge, ascendente, descendente ou parente em segundo grau.

Até setembro, foram registados 258 pedidos de exclusão de acesso aos casinos, dos quais 240 feitos pelos próprios – contra 355 em todo o ano de 2015.

Para Katchi, o Governo e as operadoras de jogo deviam dar mais atenção às condições de trabalho dos funcionários dos casinos e fazer com que tenham “um estilo de vida mais próximo do normal”, porque “a forma de vida que são obrigados a levar é que é doentia”, nomeadamente por causa dos turnos.

“Até diria mais – e muitos achariam que é inviável – os casinos deviam fechar para que não houvesse nenhum funcionário a ter de trabalhar às quatro, cinco e seis da manhã só para os casinos ganharem mais”, defende. 

Diana do Mar e Fátima Valente-Exclusivo Lusa/Plataforma

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