Na rota da ambição

por Arsenio Reis

A quinta edição era especial e a organização do Festival Literário assumiu riscos para o fazer crescer.
O secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, confesso fã do evento, promete ajudá-lo no futuro a ser ainda maior.
Ricardo Pinto, diretor do Rota das Letras, acredita estar encontrada a fórmula para a sustentabilidade e o crescimento de uma marca que se torna incontornável na cultura local.
Próximos passos: profissionalização e internacionalização.

 

 

Sara Figueiredo Costa 

O CAMINHO FAZ-SE ANDANDO

A quinta edição do festival literário de Macau chegou na semana passada ao fim, depois de duas semanas de debates, apresentações de livros, filmes e concertos. Como acontece desde a primeira edição, as conversas são o motor central de um evento que tem na troca de ideias e experiências a sua linha de força

Na primeira mesa deste Rota das Letras, José Pacheco Pereira, uma das últimas figuras da cultura portuguesa a cumprir os requisitos daquilo a que ainda chamamos um intelectual, e Hu Ching-Fang, escritora de Taiwan, autora de livros de ficção e de ensaios, conversaram sobre cultura e deram o mote para os dias seguintes, entre o edifício do Tribunal e vários outros espaços espalhados pela cidade.

Quem esperava contrastes geracionais e geográfico-culturais foi desarmado. Ambos falaram de uma cultura humanista, vendo os livros como pilar estruturante da sociedade e ferramenta que permite uma relação consciente com o mundo, os outros e os poderes que nos regulam. “A cultura é importante para resistir à opressão. Mesmo numa democracia, precisamos de cultura para perceber o que se passa e este é um aspeto muito importante”, disse José Pacheco Pereira, acrescentando: “Cultura é poder, claro, mas não nos defende da barbárie.” Hu Ching-Fang reforçou a ideia, partilhando a sua experiência pessoal: “Quando era pequena, não se questionava se a cultura servia para alguma coisa, porque era óbvio que sim. Ler deu-me o poder de saber enfrentar o mundo, de aprender.” A grande divergência entre ambos passou pela relação com a biblioteca. O historiador português mantém uma na Marmeleira, com 200 mil títulos sempre em crescimento vertiginoso;  Hu Ching-Fang guarda-a parcialmente no tablet, sem espaço para tantos livros físicos.

Estava dado o mote para 15 dias de conversas quase sempre amenas, mesmo quando os pontos de vista eram diferentes. Foi o que aconteceu na sessão que juntou Wu Mingyi, de Taiwan, e Shen Haobo, da China continental, ambos editores. A China lida com um mercado em franco crescimento, tirando partido da popularidade dos escritores nas redes de micro-blogging e expandindo vendas aos milhares nas grandes superfícies; já Taiwan mantém uma escala mais reduzida. O retalho é maioritariamente ocupado por livrarias independentes e a maioria das editoras publica a partir de critérios mais afinados com as linhas do seu catálogo e tendências de mercado. No capítulo das diferenças, nesta mesa como noutras onde estiveram autores da China e de outros lugares, há que contar com a censura. Como resumiu Shen Haobo: “É simples; basicamente, obedecemos”. Wu Mingyi contrapôs: “Já sabemos que há censura, por isso, se um livro for censurado na China, pode-se sempre ir publicá-lo a Taiwan”. 

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Dois vultos
Camilo Pessanha e Tang Xianzu foram os escritores homenageados. Pessanha morreu há 90 anos, e a cidade que por estes dias o celebrou  – ainda que tão diferente –  foi onde passou parte importante da sua vida, escrevendo a obra que o confirmaria como um dos grandes poetas do século XX. Aqui enfrentou e fugiu dos seus demónios, entre a aprendizagem dos caracteres chineses e uma sensação de desconforto que talvez não fosse dirigida a Macau, mas sim ao mundo. Tang Xianzu nasceu em Jiangxi, em 1550, e depois de altos e baixos na carreira de oficial, foi colocado na província de Guangdong, o que acabou por trazê-lo a Macau. O Pavilhão das Peónias é a sua obra-prima, frequentemente comparada à produção de William Shakespeare (seu contemporâneo).

Tang Xianzu terá passado bastante tempo Macau e deixou referências escritas sobre a presença dos navegadores portugueses, dos comerciantes e dos produtos que nessa altura aqui se encontravam, nomeadamente as joias vindas de outras paragens. Como disse Mu Xinxin, pontuando o rigor da sua intervenção com um momento de humor, “a passagem de Tang Xianzu por Macau é extraordinária para a cidade, porque não foi Hong Kong que ele visitou!”.

As sessões dedicadas a ambos os escritores juntaram leitores, académicos e especialistas, contribuindo para um regresso do público a duas obras tão fundamentais. Paulo Franchetti e Daniel Pires ajudaram a compreender a época de Pessanha e a complexidade da edição da sua obra. Yao Feng, que traduziu recentemente a Clepsidra para chinês, numa publicação do Instituto Internacional de Macau, partilhou as dificuldades da tarefa, mostrando-se satisfeito com o resultado final. Quanto a Tang Xianzu, especialista em teatro e ópera chinesa Mu Xinxin, falou sobre a sua vida e obra, bem como sobre a sua passagem por Macau, há cerca de 400 anos.  

O Rota das Letras programou atividades complementares nesta homenagem, nomeadamente a performance de Gil Mac, encenador e intérprete multifacetado, a partir do universo de Camilo Pessanha, e a atuação da Trupe de Ópera Cantonense de Foshan, que apresentou uma série de excertos de óperas famosas, entre elas O Pavilhão das Peónias, de Tang Xianzu, no Teatro D. Pedro V.  

ESPÍRITO E PROXIMIDADE

PLATAFROMA falou com Hélder Beja, subdiretor do festival, sobre a interação entre escritores, de diferentes línguas e origens, bem como entre estes e o público. “Cada edição é muito especial em relação a isso. Há circunstâncias que vão dos autores e da dinâmica que o festival lhes impõe durante os dias que cá estão. Este ano os primeiros dias foram sempre muito intensos, com atividades ao fim do dia, e percebemos que essa dinâmica de interação ia demorar um bocadinho a arrancar. No quarto dia, quando conseguimos ter toda a gente num jantar, isso notou-se logo e criou-se aquele espírito de grupo que todos os anos é muito importante”.

Quanto ao público, “tem sempre muito acesso aos autores, o que permite um contacto muito descontraído e próximo. Tirando uma ou duas sessões, estiveram no mínimo cerca 35/40 pessoas; e muitas acima disso. Os concertos de Yao Shisan, João Caetano e Cristina Branco também correram bem. Fizemos o downscale do Cotai – onde costumávamos fazer os concertos – para o Centro Cultural e parece-me que este é o sítio onde faz sentido. Podemos no futuro até pensar em salas mais pequenas, como a do Teatro Dom Pedro V. Vamos ver.”

Com um orçamento de 3 milhões de patacas, 1,7 milhões das quais financiadas por fundos públicos, o Rota das Letras tem crescido anualmente, em termos de público, número de autores e presença na cidade. Se nas primeiras edições se notava pouca gente na assistência, com predominância de público de língua portuguesa, o evento tem atraído gente de outras origens, nomeadamente público chinês. Esforço importante numa cidade onde convivem idiomas tão distintos, por vezes dificilmente em contacto. “Este ano o festival deu muitos passos importantes para conseguir uma maior presença na cidade, a começar pelas parcerias Media que estabeleceu. A juntar a isso, houve um investimento maior no gabinete de imprensa e numa equipa mais profissionalizada nessa área. E houve um fator muito importante sob a forma de parceiro Media: um jornal chinês tradicional, o Va Kio, onde nunca tínhamos entrado antes. A juntar a isto, tivemos o maior programa escolar de sempre, o que também ajuda a que essa presença seja mais intensa. Chegar a mais público chinês é preciso? Sim, é um esforço para continuarmos a fazer; mas não apenas pela divulgação, também pela curiosidade. Quando as sessões são em português, apesar do esforço para traduzirmos continua a haver pouca gente não-lusófona, e isso é algo em que continuaremos a trabalhar.” 

O ELOGIO DA DIFERENÇA

Encontrar consenso entre as mesas de debate seria improvável. Não só os autores vieram de lugares tão distintos como a China continental, País de Gales, Estados Unidos, Portugal, o Brasil ou Filipinas, o que acarreta inevitáveis diferenças de contexto e narrativa, como os motes para as conversas foram igualmente distintos. Apesar disso, quem ouviu Adam Johnson, Prémio Pullitzer 2013 que escreveu The Orphan Master’s Son, sobre a Coreia do Norte; Hu Ching-Fang e Chan Koonchung sobre os “estranhos na cidade”; ou os escritores que debateram a escrita numa língua minoritária, terá reparado em visões recorrentes, assumidas as diferenças entre culturas, línguas e histórias. Miguel Senna Fernandes deixou bem clara essa ideia enquanto contextualizava questões sobre a identidade macaense: “Se temos algo que é diferente, isso deve fazer-nos felizes.” Já Hu Ching-Fang havia feito a apologia da diferença, também a partir da língua: “Não acredito que seja possível um ser humano entender outro em toda a sua plenitude; por isso a curiosidade é tão importante. Não somos iguais, não temos de ser iguais, e isso é uma coisa boa”. Adam Johnson corroborou. Falando sobre a Coreia do Norte, explicou que “a pesquisa mais importante que podemos fazer sobre um sítio é a humana, porque enquanto não falarmos com as pessoas, ouvirmos as suas histórias e percebermos as suas diferenças, a sua individualidade, não há estatística que nos ajude”.

Este elogio da diferença pode soar ríspido quando descontextualizado, mas a sua invocação ao longo do Rota das Letras deixa perceber que a grande mais-valia de encontros como este não é o fingimento em torno de uma suposta igualdade cultural, fazendo tábua rasa de contextos, heranças, construções individuais e coletivas, mas sim a assunção da diferença enquanto elemento unificador, capaz de criar reconhecimentos mútuos a partir das histórias que cada um carrega consigo. Um pouco como a história contada pelo escritor brasileiro Marcelino Freire, deslumbrado com Macau e Hong Kong: “Comi uma panqueca feita no hotel que era a mesma que a minha mãe fazia no sertão de Pernambuco, para substituir o pão. Matei a saudade da minha mãe e até a saudade da fome. Já tinha encontrado esta panqueca em Havana e agora encontrei-a aqui, em Macau, numa máquina que tem um botão, a gente carrega e sai a panquequinha da minha mãe, atravessando o oceano”.

Juntar memórias, heranças e narrativas, criando caminhos para que umas e outras se encontrem algures em Macau, parece ser a verdadeira vocação do Rota das Letras. Afinal, o caminho já lhe está no nome.

SERÁ MUITO DIFÍCIL RECUARMOS
Luciana Leitão

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Foi o programa mais ambicioso de sempre, mas é uma aposta a continuar. O diretor do Rota das Letras, Ricardo Pinto, garante que a quinta edição trouxe “o maior nível de participação de sempre”, devendo, assim, no próximo ano, adotar-se o mesmo modelo e a manutenção de vários fatores, tais como o número de oradores, a duração do festival literário e a homenagem a autores de vulto ligados a Macau e a internacionalização

 

Plataforma – Que balanço faz desta última edição?
Ricardo Pinto – Apostámos no crescimento do festival e foi uma aposta ganha. Tivemos talvez o maior nível de participação de sempre, aqui no edifício do antigo tribunal. Mesmo durante a semana, tivemos algumas sessões com casa cheia e, de uma forma geral, todas as sessões foram seguidas com muito interesse. Tivemos mais uma vez o grupo de incondicionais, que nos acompanharam ao longo destas semanas, em todos os dias e todas as sessões, o que é muito bom. As apostas feitas, nomeadamente numa maior internacionalização, acabaram também por resultar bem. Um dos grandes momentos do festival a presença do escritor americano Adam Johnson [vencedor do Pulitzer], não apenas pela apresentação que fez aqui do seu livro [The Orphan’s Master Son] – e do que o levou a escrever, com as dificuldades com que se deparou – mas sobretudo pela forma como se apresentou na Universidade de Macau, que foi brilhante e altamente inspiradora para quem o ouviu. Desperta a vontade às pessoas para dedicarem muito mais tempo aos livros e à literatura e faz com que ganhem vontade de também elas escreverem.

– Esta edição foi a mais ambiciosa de todas, no número de convidados e na duração do festival. Este modelo é para manter?
R.P. – Está tudo em aberto. É um modelo mais exigente e tivemos de fazer crescer um bocadinho a equipa de produção; é também mais exigente do ponto de vista de captação do público. É preciso pensar se Macau está preparada para um evento desta dimensão e eu julgo que sim. A aposta foi ganha porque, ao invés de termos algumas sessões despidas de público – seria eventualmente de recear, dada a maior extensão do festival – a verdade é que isso não aconteceu. Eventualmente, o modelo será para prosseguir nestes moldes.

A grande vantagem de termos chegado às duas semanas é a existência de três fins-de-semana, que são os dias em que as pessoas estão mais disponíveis para visitar o festival. Essa questão poderá voltar a ser tentada. Pelo facto de se ganhar um fim-de-semana, poderá valer o esforço de ter mais dois ou três dias de festival, com tudo o que isso acarreta de maior esforço financeiro.

A maior ambição tem também a ver com o facto de ser a quinta edição, um número bonito que interessava salientar. Ao mesmo tempo, existem várias circunstâncias coincidentes, nomeadamente a passagem do quarto centenário da morte de Tang Xianzu e o nonagésimo aniversário do desaparecimento de Camilo Pessanha, que por si só aconselhavam um espaço ainda não explorado, que era a homenagem a grandes vultos da literatura relacionados com Macau. Faremos com outros autores, em próximas edições. Isso por si só trouxe maior número de convidados ao festival. Não se tratando aqui de convidar autores, mas académicos para falarem sobre a obra desses autores, obviamente que isso acarretou também um maior número de convidados e de sessões. Tivemos sempre a preocupação de acompanhar estas homenagens por algo mais do que apenas as conversas com os académicos que nos visitaram – por isso convidámos um grupo de ópera de Foshan a representar um excerto do Pavilhão das Peónias, no Teatro D. Pedro V, tal como convidámos também um ator português para várias performances relacionadas com Camilo Pessanha. 

Estamos muito satisfeitos com o resultado e o crescimento decorreu disso, mas também do facto de termos pela primeira vez apostado na internacionalização do festival; não apenas pelos convites que dirigimos a alguns autores, mas também pela circunstância de termos explorado novos contatos e formas de apoio. Encontrámos formas de colaborar com vários consulados em Hong Kong e Macau, que trouxeram alguns autores a esta edição. Todo esse crescimento teve como consequência um maior dispêndio financeiro. E o facto de alargarmos o espaço temporal levou ao crescimento de toda a máquina. Seguir-se-á um período em que teremos de pensar em tudo isto e teremos de ver se faz sentido ter apostas igualmente ambiciosas – às vezes arriscadas – em futuras edições. Olhando para a forma como as coisas se passaram, será muito difícil recuarmos.

– É sustentável manter esta dimensão, na base de apoios e subsídios?
R.P. – Julgo que sim. Desde o princípio a nossa ideia foi procurar o maior número de apoios possível, entre entidades privadas e públicas, de forma a não ficarmos dependentes de ninguém em particular. No fundo, o esforço que pedimos a cada uma das entidades que nos apoia é relativamente pequeno. É óbvio que a parte das entidades públicas é mais significativa e aí haveria razões para preocupação relativamente a um apoio futuro, caso fosse nossa intenção continuar a crescer. Não é necessariamente assim e este modelo é um modelo bastante viável e razoável. Serve os interesses do festival e os do nosso público. Temos tido desde o início declarações de apoio por parte de entidades públicas, nomeadamente do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, que, publicamente, — e também em privado — confessou a sua intenção de continuar a apoiar o festival, mas também de reforçar esse apoio, por considerar que este é um evento que faz todo o sentido existir em Macau, com condições para ser realizado de uma forma digna, continuada, estável.

É bem possível que possamos contar com algo que até aqui não temos tido, que é uma estrutura mínima de apoio ao festival, que possa começar a prepará-lo com a antecedência devida, sem esforço excessivo as pessoas envolvidas na organização. 

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– Já na próxima edição?
R.P. – Julgo que sim; ter já uma pequena equipa que possa funcionar com grande antecedência e comece a preparar o festival. As coisas correram bem e, de uma maneira geral, as pessoas ficaram contentes com a forma como a organização resolveu os problemas que um evento destes levanta.

Os nossos convidados partem, regra geral, bastante satisfeitos com a organização, com a cidade, com o público e com os jornalistas de Macau – muito interessados relativamente nas suas obras e nas suas vidas. A esse nível estamos bastante contentes. É óbvio que tudo pode ser feito, não apenas melhor, mas com menos sacrifício de algumas pessoas que fazem parte da organização, se houver trabalho previamente, com condições mínimas, com a tal equipa de pré-produção a avançar a tempo e horas.

– A internacionalização é aposta a manter?
R.P. – Desde o início achámos que o núcleo duro de autores lusófonos e do mundo chinês era para manter, mas que deveria haver autores de outras proveniências e de outras literaturas. Fizémo-lo logo na segunda edição com autores franceses. Depois disso, com autores de outros países. Esta foi a edição em que essa aposta foi mais marcada e estabeleceram-se acordos de com alguns dos consulados. Foi a edição em que mais se procurou a internacionalização e é um ponto de viragem. Em princípio, é uma aposta para continuar e faz todo o sentido. As pessoas já demonstraram o seu interesse em autores de outras origens.

– Isso trouxe também o público anglófono ao festival?
R.P. – Conseguimos algum público novo, mas é óbvio que há muito a fazer. Muitas das pessoas que aqui trabalham estão ligadas à indústria do jogo e hoteleira e, sobretudo nos dias de semana, é um bocadinho difícil estarem disponíveis para o festival. É claramente um público que nos interessa atrair e em próximas edições procuraremos promover mais o festival junto dessas comunidades.

– Há formas de tornar o festival mais sustentável e menos dependente de subsídios?
R.P. – É muito difícil. Era preciso uma componente comercial suficientemente forte que permitisse financiar a componente não comercial. Infelizmente, em Macau é complicado. Foi um bocado essa ideia que nos levou a separar os concertos do resto da programação, assumindo nós a responsabilidade e o risco de trazer cá os músicos que nos têm visitado ao longo destes cinco anos. Todos os concertos têm sido extremamente deficitários, porque as pessoas em Macau não estão habituadas a assistir a espetáculos, sobretudo a pagá-los. Por outro lado, a generalidade do público talvez esteja interessada num tipo de música que não se enquadra naquilo que achamos que faz sentido num festival. Procuramos trazer músicos em que as suas letras são determinantes, uma música nada comercial e que tem mais dificuldade em atrair um público vasto.

Não sendo possível uma componente comercial forte e lucrativa, que pudesse financiar o resto da programação, é obvio que só será possível continuar a fazer o festival com as entidades que nos têm apoiado. Seria bom que este vastíssimo leque de apoios permaneça, porque o esforço que lhes é pedido é mínimo. Além disso, o retorno que conseguem com a presença dos nossos convidados nas suas unidades hoteleiras, bem como outras formas de colaboração que temos encontrado, são formas de colaboração úteis para todas as partes. Se continuarmos a contar com esse apoio, o festival é absolutamente viável. 

Temos um orçamento  que não chega aos três milhões de patacas, para um evento que se prolonga por 15 dias e que traz a Macau alguns dos melhores escritores de várias literaturas, músicos, filmes, exposições; este anos, pela primeira vez, ópera cantonense… Para um evento com todas estas caraterísticas, com toda esta oferta durante 15 dias, o esforço que se pede à generalidade dos nossos apoiantes, é sustentável e viável, o que torna fácil prosseguir neste caminho.

– Os concertos, sendo deficitários, são para repetir?
R.P. – Sim. O que se eventualmente se pode é ajustar ao orçamento aplicado aos concertos. Já fizemos apostas mais arriscados, como a Cat Power, cujo cachê foi mais significativo e que não correu bem em termos de público. Temos percebido que, não sendo fácil levar um público expressivo às salas de espetáculos, temos de optar por espetáculos que acarretem despesas menos significativas. Já fizemos isso este ano: Cristina Branco, uma das maiores fadistas portuguesas; um músico da terra, João Caetano, que veio fazer o seu primeiro espetáculo a solo; e uma banda chinesa de Pequim. Este modelo é viável. Mais uma vez, vamos perder algum dinheiro nos concertos, mas a ideia que temos para o festival é que seja também uma festa para as pessoas – a música é uma componente muito importante. Evidentemente, pode-se sempre promover melhor e conseguir melhores apoios. Estou convencido que, com a continuação, as pessoas se habituarão ao facto de estes concertos serem de alguma forma especiais. Justificam a presença e o pagamento de bilhetes e temos esperança de que as pessoas se habituem a isso.

 – Há outros objetivos para o festival?
R.P. – Não falámos dos livros que publicamos. Lançamos a quarta coleção de contos sobre Macau, em três línguas. Lançamos também um livro de as memórias de uma senhora que viveu em Macau, durante o período da guerra. As publicações resultantes do festival são uma das componentes que mais acarinhamos; é um legado que fica destes eventos. Teremos oportunidade e vontade de fazer crescer esse tipo de projeto. Vamos também procurar atribuir bolsas para as pessoas possam estarem em Macau, com mais tempo, a escreverem e a fazerem cursos de tradução.

POUCA TRADUÇÃO LITERÁRIA DE MACAU

Acabou de lançar a tradução para chinês do livro Clepsidra, do poeta português Camilo Pessanha. Yao Jing Ming gostaria de ver mais tradução literária, em Macau, mas falta o intercâmbio com a China Continental para que essas obras depois cheguem a um mercado maior

 

Yao Jing Ming — ou Yao Feng, pseudónimo poético — lançou a tradução para chinês de Clepsidra durante o Rota das Letras. Nesta terra onde a tradução é um negócio, o autor admite que ainda há poucos em Macau a arriscar fazê-lo ao nível literário.

Doutorado em Literatura Comparada e Literatura Universal pela Universidade de Fudan, em Xangai, Yao Jing Ming é um poeta chinês, mas também tem uma carreira de tradutor literário, tendo já transposto para chinês textos de autores portugueses como Eugénio de Andrade ou Sophia de Mello Breyner Andresen. No ano em que se completam 90 anos da morte de Camilo Pessanha, o poeta chinês lançou “Clepsidra”, que, admite, “foi uma experiência especial”, diferente das anteriores traduções de outros autores portugueses. “É a escola simbolista, joga muito com a simetria e a musicalidade; foi um grande desafio”, diz.

De todos os autores portugueses que já traduziu, Yao Jing Ming diz que Eugénio de Andrade continua a ser o favorito. Para o futuro, está a preparar a tradução de uma antologia da obra do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. “Este Andrade é outro mundo, muito diferente de Eugénio de Andrade, mas também muito bom”, diz, acrescentando: “São dois rumos, mas que se encontram naquilo que é a boa poesia.”

Em Macau, há poucos a arriscar a tradução literária. “Dá um grande trabalho e depois é preciso gostar; é preciso ter gosto pela literatura. Não traduzo para ganhar dinheiro, mas por gosto”, afirma o também diretor-adjunto do Rota das Letras.

Mas há limitações em Macau — a começar pela dimensão geográfica, que limita a divulgação destas traduções; depois, a impossibilidade de circulação de publicações do território, na China Continental. “É quase impossível sair para a China, não há uma rede de distribuição.”

Pelas suas mãos, chegou ao outro lado da fronteira a obra de Eugénio de Andrade, tendo sido bem acolhida. Fernando Pessoa também é bastante conhecido e bem aceite. “Por exemplo, ‘Livro do Desassossego’, de Fernando Pessoa, já vai na quarta edição”, acrescenta.

O “paraíso”
Há quem faça muito dinheiro em Macau a trabalhar em tradução, mas de outros géneros. “As pessoas conseguem fazer traduções e viver muito bem, na área jurídica e comercial”, diz, esclarecendo que as traduções são necessárias até em coisas mais simples como o catálogo de uma exposição.

Apenas o Instituto Cultural tem apostado na tradução literária. “Tem uma secção de traduções literárias. Por exemplo, no ano passado o poeta Du Fu foi traduzido por António Graça de Abreu, mas foi um trabalho encomendado”.

O mercado livreiro do Continente é peculiar. “Neste festival esteve o poeta Shen Haobo, que também é editor. Mas a empresa dele, por exemplo, não tem ISBN [o Número Padrão Internacional de Livro] — tem de se solicitar a uma editora do Governo. E há editoras do Governo que vivem disso”.

Para que as traduções saiam da RAEM e entrem na China Continental, Yao diz que é preciso “uma espécie de parceria” do outro lado da fronteira. “É um projeto muito interessante, que vale a pena apostar.” 

Atualmente, o poeta cestá também interessado em traduzir o autor chileno Pablo Neruda. “Já traduzi quatro ou cinco poemas dele, a partir do Espanhol”. Na realidade, para Yao Jing Ming, o tradutor “não pode nem deve traduzir todos os poetas”, devendo procurar um autor que perceba ou “conheça”, também ao nível pessoal. “O Pablo Neruda é sempre emocional, tem de se conhecer bem essa cultura para traduzi-lo; senão falta calor, paixão que ele já transpôs pela palavra dele”.

O diretor do Rota das Letras, Ricardo Pinto, diz que o evento pretende lançar as sementes da tradução. “Pode fazer-se muita coisa; pode usar-se o festival para pôr os editores em contato com os escritores mais do que acontece agora e potenciar a tradução de algumas obras nas mais diversas línguas”. Dado o cruzamento dos vários agentes envolvidos no processo editorial neste encontro anual, “seria uma pena se daqui não resultasse uma muito maior promoção das diferentes literaturas”, conclui. 

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