Línguas entrelaçadas

por Arsenio Reis

A comunicação em Macau não é homogénea; fala-se em várias línguas e, muitas vezes, ao mesmo tempo. No diálogo ocorre um processo único entre culturas e alfabetos. Num lugar de raízes chinesas e portuguesas, em que a terra roubou espaço ao mar, há tantos fatores culturais que se apeganham e raspam, que a língua não é unânime e a linguagem é especial. Há por Macau um tipo de modelo linguístico que nunca tinha visto e que, tal como os enormes cones de incenso pendurados nos templos, arde sem ter fim. Queima um anel de cada vez e o fumo nunca para. Talvez aqui as línguas sejam assim: às camadas, com anéis que sobem e não se largam. Quase perpétuas, imortalizam versões da língua-mãe, crioulos que se recordam da escola.

Ora cheira a mar, ora cheira a alcatrão; ora espreita o Sol, ora descem as nuvens. Na comunicação tudo se mistura. Acontece em cantonês, chinês, português ou inglês, mas todas se podem entrelaçar. Sobra uma espécie de mímica, na esperança de salvamento. Não vou mentir, não é tão fácil nem divertido como parece. Mas também não quero exagerar: é um dia-a-dia rico em que nos habituamos a sentar à mesa com palavras de todos os sabores, que cozinham a dissemelhança.

Quem nunca experimentou a beleza de um diálogo em timbre ânglico, quem não sabe escutar pronúncias sínicas de nove tons, quem não ouve a terra do fado, não sonha o mundo que cabe numa conversa. Não imagina o peso da cultura, não entende as suas particularidades, não aceita que o mundo tem visões diferentes para o que parece ser a mesma coisa. 

Se virarmos a língua do avesso, as palavras também mudam o significado. Ouço coisas em Macau que não se servem em dicionários. Faz parte da terra; é fogo das suas das suas gentes, lastro da sua História. Revoluções de cravos para uns; eras imperiais para outros; artérias e veias que moldam estórias do mesmo corpo. 

As caravelas ainda hoje se deixam ver. Rastos do português em nomes de ruas e paragens de autocarro. A mistura continua, com a força dos ventos que são daqui, como o permanente exercício da tradução. A dinâmica de aprendizagem, única, passa contudo despercebida.

É um desafio pisar esta terra e ver a sopa de vogais, caracteres e conversas com o tempero dos tons. Nem o nome da terra é dito em uníssono. Há bicas nos cafés e chás por todo o lado. O mar não cheira igual…e ainda bem. Há coisas que não têm tradução. 

Catarina Cambóias

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