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CASA POEMA – HOMENAGEM AO POETA RUY CINATTI NO CENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO

No passado dia 8 de Março celebrou-se o centenário do poeta, antropólogo e engenheiro silvicultor Ruy Cinatti, nascido em Londres em 1915, e falecido em Lisboa a de Outubro de 1986.Tendo iniciado os seus estudos no Instituto Militar dos Pupilos do Exército, os quaisprosseguiu no Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, onde se licenciou em Agronomia (especializando-se em silvicultura), tendo posteriormente estudado na Universidade de Oxford, onde se doutorouem Antropologia Social.
A sua profissão de agrónomo levou-o a percorrer todos os actuais países africanos de língua portuguesa (sobre os quais e suas poéticas vivências escreveu), havendo estabelecido com Timor-Leste os mais fortes laços, tendo, inclusivamente celebrado um pacto de sangue com o chefe de uma linhagem timorense, tomando, a partir de então, e segundo os costumes e tradições de Timor-Leste, a cidadania timorense.
Para além de milhares de fotos e alguns filmes, Ruy Cinatti é ainda autor dos estudos Motivos Artísticos Timorenses e a sua Integração e Arquitectura Timorense, ambos de 1987.
Ruy Cinatti foi, em 1940, juntamente com Tomaz Kim e José Blanc de Portugal, co-fundador e co-director da 1.ª série de Cadernos de Poesia, na qual se publicaram 5 volumes antológicos, e, entre 1942 e 1944, foi fundador e director da revista Aventura.
Com vasta obra publicada, reunida em Obra Poética, 1992, deixou imensos inéditos. Postumamente, e sob orientação do seu testamenteiro literário, o Padre Peter Stilwell, foram publicados os volumes de poemas Corpo-Alma, 1994; Um Cancioneiro para Timor (poemas e fotografias suas), 1996; Tempo da Cidade, 1996; Archeologia ad UsumAnimae, 2000. Mais recentemente, com selecção e notas de Manuel de Freitas, saíram no final do ano passado e nos começos deste, as antologias Corpo Santo e 73 Poemas.
Certos de que a melhor homenagem que se pode prestar a um Poeta é ler a sua Obra, damos hoje a público sete poemas inéditos de Ruy Cinatti, o poeta nómada cujo trágico destino de Timor-Leste, em 1975, contra o qual lutou com todas as suas forças e desesperada amargura, lhe antecipou a morte.

WORK IN PROGRESS XD

Um navio navega em mar aberto.
Várias gaivotas seguem-no, pairam, voltam
ao porto onde o peixe é uma festa
p’rà sua ininterrupta voraz fome.

Na proa do navio alguém se afirma
olhar atento, sonhador, intacto.
As ondas cavalgam no seu espírito
como cavalos na imensa planície.

Fugaz, um assobio chama-o, inventa
novos horizontes de ócio, de calma.
Seus companheiros de aventura e tença
entornam sobre os bancos os seus corpos.

A festa continua. São de palavras
os gritos estridentes das gaivotas.

30/7/83

WORK IN PROGRESS XDII

Negaste-me um poema e eu fiquei
igual – o que sempre fui – alheio,
adverso aos caprichos de mulher
que se deseja conquistada e amante

e, comparativamente, se distrai
como os animais, émulos seus, legítimos
adoradores do macho, complemento
que de tortura a enche: um frio-quente,

onde voraz que lhe morde as vísceras,
a reabilita e paciente aquiesce
ao que nela jaz, de complacente
natureza dada a quem mais vive.

Negaste-me um poema e eu fiquei
senhor de ti, ámen, para sempre!

29/7/83

WORK IN PROGRESS DXXXII

Pelos densos bosques que devassaram,
pluviais florestas, ermos incógnitos,
caminho e sonho e relembro algo
de efeitos vários só por mim vividos.

Com minhas mãos escondi um rosto
que me fitava: contorcido ramo
de tal forma e qual que tremi de susto
perante o insólito que se aproximava,

nele pressentindo para seu desgosto
uma face pálida, um olhar ambíguo
de anjo ou demónio, de mistério antigo
como em Eleusis o desfile das máscaras.

Tu, que me escutas, não negues as dádivas
de mim recebidas, virgem por ser puro!

16/8/83

WORK IN PROGRESS DXXXIII

Pelo mundo caminhei. Sobrevoei
ilhas de esmeralda, circunscritas
a bancos de coral, hirtos recifes
expostos ao natural fluir das ondas.

Ali sonhei – outros sítios vistos –
ser possível subir meu paraíso
ao nível doutro em que me afirmei
Adão de mil Evas primoroso.

Mas Deus não quis. Só, regressei
à minha petiz mediania:
aureamediocritas, não a de Ulisses
volvido a Ítaca ao leito de Penélope.

Por quanto tempo, pergunto, lembrarei
Que a fé sustenta uma esperança enorme?!…

16/8/83

WORK IN PROGRESS

Anoitecendo a vida recomeça.
Ó tempos idos de vagar felino!
Ela recomeçou e eu sinto, admito
que a minha vida não é deste mundo.

De onde, só Deus o sabe. E eu medito
A minha infância, adolescência adulta,
Tão novel nos seus jogos de criança
Como de aguda senda de velhice.

Ó minha mãe, de ti me disseram,
que me eras afim, na tua inocência,
quando dançavas com guerreiros bêbados,
fiel a Deus, à tua virtude.

Teu pai escreveu: tenho por filha um anjo.
Eu, seu neto, escrevo: sou um santo e afirmo-o!

19/8/83

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