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Luís Andrade de Sá – “OS PRAZERES VAZIOS DESTES DIAS”

A mais de 700 quilómetros por hora, em direção ao solo gelado dos Alpes, o piloto alemão da Germawings não profere uma palavra, nos oito minutos da descida alucinante, enquanto a tripulação tenta destruir a porta da cabina e os passageiros gritam enlouquecidos. Na caixa negra só fica registado o som da sua respiração, um bafo pesado que passará para a história como um dramático ato falhado de “famous last words”.
Poucos dias antes, num registo totalmente diferente, o milionário americano Robert Durst olhou-se no espelho da sua casa de banho e murmurou: “O que eu fiz? Matei-os a todos, é claro”. Um microfone (que Durst ignorava, ou talvez não) gravou estas palavras e ele foi preso, suspeito de ter morto duas pessoas num passado já distante. A sua confissão, “duas partes de Shakespeare, e uma de Beckett”, como notou a The New Yorker, resultou de um ato gratuito de vaidade, o irrestível som de palavras que ele teve que ouvir de si próprio, para se assegurar dos crimes que cometeu.
Hoje , ele bem poderia filosofar:”De que me receio? De mim mesmo”, como o disse Ricardo III, o rei inglês enterrado de novo na última semana, depois das suas ossadas terem sido descobertas sob um parque de estacionamento. E, na versão de Shakespeare, Durst prosseguiria: “Ricardo ama Ricardo, ou seja, eu e eu. E aqui um assassino? Não! Sim, sou eu!”
E o que há a mais de Shakespeare na autoconfissão de Durst, o sonoro, dramático e inusitado silêncio do piloto alemão reconfirmou todas as teorias sobre a importância semiótica do não dito. Obstinado, recusou um último “Rosebud” (Charles Foster Kane), ou “Et tu, brute? (Julius Caesar) ou, mesmo o trivial “scheiße”. Porquê?
O silêncio, a sua recusa em justificar o ato tresloucado, em deixar uma mensagem, uma última frase, é toda uma narrativa, aberta a qualquer especulação que nunca será aclarada. Nas areias da Síria ou na brancura dos Alpes, o nihilismo volta a ser uma marca dos tempos.

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