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Luís Carlos Patraquim * – BREVIÁRIO DE BALÍSTICA

 

A balística estuda os mecanismos de disparo do projéctil. Tem em consideração os movimentos dentro do cano da arma e no exterior. Analisa, em termos forenses, as formas de impacto no alvo. Estas são as chamadas lesões perfurocontundentes. Nos últimos dias temos assistido a diversas análises. A balística está na ordem do dia. Em sentido real e em sentido figurado. São muitos os disparos e as armas. Por exemplo, discute-se agora quem é Charlie “ou pas”. Esta falsa dicotomia decorre da comoção que o espaço mediático sabe muito bem encenar.

António Cabrita fez, no Savana da semana passada uma análise aprofundada com a qual estou de acordo. Foi direto ao Símbolo, e apontou a possibilidade de fechamento que o texto pode propiciar e do qual se aproveita o radicalismo que se reclama do Islão, treslendo-o.

Todas as religiões são abertura e dogma. Quando tudo deriva do que se considera o texto único na mundividência mesclada do sagrado e do profano, a balística assume a primazia. O que aconteceu na redação do Charlie Hebdo é um crime. Ponto. O Charlie também tinha a sua balística: um humor corrosivo, sem fronteiras nem tabus. Gostar ou não gostar não acrescenta nada a nenhum debate sério. O jornal é publicado em Paris, a capital de uma República Laica.

No ordenamento jurídico da modernidade e da pós modernidade, ocidental, at least,  não existe a noção de blasfémia. As guerras religiosas da velha Europa levaram John Locke a escrever a sua crucial Carta sobre a Tolerância. O Iluminismo tentou resolver a questão com o primado da razão. A História é complexa. A Razão falha e engendra os seus monstros como nos mostrou Goya. A emergência da Religião na política configura a nova balística, real e figurada, nesta globalização desigual e desencontrada, injusta. As lesões perfurocontundentes a que assistimos, implicam uma análise que inclua a longa duração e a contigência. A manipulação política também.

Decorrem das formas como se mantém o Império. O Império é mais do que os Estados Unidos. É um arco que vai de Washington a Beijing, de Berlim a Sidney, de Nova Dheli ao Cairo, de Pretória a Moscovo. Talvez à excepção do Budismo, que não é proselitista, todas as religiões usaram a espada. Ninguém está inocente.

O jihadismo atual configura a exacerbação do vazio, o medo do estilhaçamento identitário, a reação da matilha, no sentido que lhe dá Elias Caneti. A matilha é açulada. Em análise próxima, com um aceno mais longínquo à batalha de Lepanto (Império Otomano versus Cristandade criando a segunda fratura, depois das cruzadas, entre as culturas do Mediterrâneo), em análise próxima, repete-se, o que está a acontecer decorre da traição anglo-francesa à promessa de uma Nação Árabe, com um forte denominador “laico”, se assim nos podemos exprimir.

O ressentimento leva à criação da Irmandade Muçulmana, no Egipto. O momento mais próximo de nós é o último ato da “guerra fria”: o apoio americano aos mudjahedin no Afeganistão ocupado pela ex-URSS. Pode dizer-se que o feitiço se virou contra o feiticeiro. Haverá , quiçá, uma utilização instrumental deste fenómeno. A perplexidade é agora essa espécie de “quinta coluna – o termo vem da guerra civil espanhola e é franquista – que são os jovens desencontrados das periferias urbanas. Elas mudaram de lugar. Ocupam outro espaço, exorcizam o vazio que lhes é imposto, com a criação de uma outra comunidade de acção e de “redenção”, dos sítios na net à mobilidade grupal que lhes proporciona uma gramática redutora e uma teleologia que os redima.

Do Xijiang ao Isis, dos subúrbios de Londres ou Hamburgo ou Paris, a necropolítica está no comando. Esta potência é avassaladora. O jogo prossegue. E interessa a muitos. Os profetas estão arredados dele.

 

*Exclusivo Savana/Plataforma Macau

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