Fernando Manuel* – O PAI DOS SENHORES ENGENHEIROS

por Arsenio Reis

 

Uma coisa que é norma, mas só aprendemos com a idade, é que à medida em que o tempo passa vamos perdendo amigos e a capacidade de fazer outros. É praticamente impossível depois de 45 anos fazer amizades novas. Estou a falar de amizades.

Posso ter três ou quatro companheiros de copos habituais na tasca onde bebo normalmente todos dias e a mesma hora.

Posso ter bons colegas de serviço com quem tenho relações de fricção e boas conversas.

Posso até ter uma senhora, mais ou menos da minha idade por quem passo todos dias ela a vender hortícolas na sua banca e a quem cumprimento com um sorriso ambíguo e um olhar que lhe diz: um dia qualquer vou te convencer a ir comigo a cama e ela devolve-me essa atitude com um sorriso de promessa e a coisa repete-se durante meses sem que nunca passe disso. Nem sequer me passou o número de telemóvel. Eu também não lhe dei o meu.

Embora veja nos seus olhos que está ansiosa para que isso aconteça. No fundo falo dum plano superior. Estou de pé com as fraldas da camisa fora das calças. Sei que estou bem vestido e limpo e nem  sequer me quero fazer notar que a nossa relação não passará disso: ela sentada na banca eu de pé a perguntar-lhe todos dias como é que te chamas. Da mesma forma, quase todos amigos que andaram comigo na escola primária nos anos 60, numa escola para pobres de missionários nos subúrbios de Lourenço Marques, ou morrem ou simplesmente desaparecerem ou naufragaram no mar imenso e inclemente de aguardente de melancia, da tentação ou do vinho dom barril. Ou então estão simplesmente malucos. Eu não morri e nem estou maluco.

Mas também não sou uma pessoa normal. Sou louco e assumo a minha loucura.

Por isso mesmo na tasca gosto de estar sentado a uma mesa sozinho.

O pessoal acha-me excêntrico, mas sei que não sou.

Naquela sexta-feira ao fim da tarde, ele chegou, puxou a cadeira, tratou-me pelo nome, fez-me lembrar que tínhamos sido colegas de carteira há 47 anos na escola primária do bairro Indígena da Munhuana.

Quando me disse o nome dele lembrei-me perfeitamente: tinha sido um craque de futebol nos nossos intervalos, mas nunca mais nos tínhamos visto. Foi espantoso: levou quase duas horas a contar-me com um discurso muito ufano a dizer que tinha três filhos e acrescentou com enfâse: “são todos engenheiros: um é engenheiro hidráulico, outro de engenharia mecânica e outro de engenharia química que até trabalha na Cervejas de Moçambique”.

Fiz uma pausa, bebi um gole e perguntou-me com ar de desafio: “E tu”. Respondi-lhe como se não quisesse: tenho cinco filhos e nenhum deles é formado em nada. “O mais velho tem frota de txovas, onde emprega seis jovens que trabalham aos pares uns a recolherem sucatas e baterias velhas pela cidade e outros a venderem coco e lanho e outros a venderem verduras e nenhum deles me incomoda. Cada um tem a sua casa”.

Levantei-me e peguei na minha cerveja e disse-lhe: preciso de apanhar ar, vou mudar de mesa.  Mande um abraço aos seus filhos engenheiros.

O que ele nunca vai saber é que eu nem sequer tenho filhos.

 

*Exclusivo Savana/Plataforma Macau

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