Fernando Manuel * – O GRANDE APAGÃO

por Arsenio Reis

 

Subscrevo sem condições a opinião segundo a qual um país sem documentários é como uma família sem um álbum de fotografias. O tempo flui inesperadamente, indiferente a nós, ao nosso crescimento e envelhecimento e pode se dizer o mesmo em diferente a si próprio. Precisamos de nos rever regularmente, de tempos em tempos, como quem faz um mexerico para se agarrar a algo de concreto, embora passado em quase que sem forma definida.

A fotografia, as ruas que nos viram crescer, os jardins, os lugares onde tínhamos as nossas brincadeiras, tudo isso contribui para que ao longo do tempo não percamos o rumo da nossa identidade como seres únicos singulares e inimitáveis no meio do conturbado mar em que somos o barco do qual navegamos na vida. Negar isto é ser ignorante ou não ter o mínimo de respeito e conhecimento pelos espaços que também nos fazem. É certo que por imperativos históricos e mesmo culturais – para não falar dos políticos – fomos obrigados a desfigurar as nossas cidades e aldeias com o derrube de estátuas, mudanças radicais de toponímia para adequá-los ao país que nasceu em 25 de Junho de 1975.

Mas nada disso nega a necessidade de reconhecer que qualquer vila, aldeia e cidade tem o seu crescimento condicionado a normas, mais ou menos rígidas integralmente universais a que não se pode virar costas à conceção de um bairro residencial. Por exemplo, não se pode resumir a idealização e construção de espaços habitacionais, há que integrar nesse projeto de forma racional e sustentável a longo prazo os espaços de lazer de adultos crianças e velhos e estes tanto podem ser campos de jogos, casas de pasto, restaurantes tão necessários como escolas, centros de saúde, farmácias, rede funcional de saneamento, fornecimento de água potável e energia.

O que se nota hoje, e estamos a tomar como ponto de referência a cidade de Maputo, é que o rosto desta capital não só está a ser sistematicamente destruído tanto no seu passado – basta ver o estado em que se encontram os fedorentos bairros de Triunfo e do Alto Maé – tal como a irracional incongruência na forma como se conceberam os atuais bairros para onde se atiram, como manadas de bois, as famílias que são desalojadas das zonas destinadas à construção ou de estradas, fábricas ou de novos condomínios: Não há transporte público que lá chegue, não há energia elétrica, nem água canalizada, postos de saúde nem pensar e a farmácia mais próxima fica a 45 minutos ou hora da viagem de chapa, isto num período sem congestionamento. Feitas as contas, duas horas para ir e voltar com um medic mento, tempo suficiente para chegar à casa e deparar com um cadáver ainda quente.

Hoje em dia pode-se perfeitamente percorrer a todo o comprimento da Avenida Eduardo Mondlane, a 24 de Julho, a Karl Marx num perímetro que vai desde Alto Maé até à Polana Cimento, sem encontrar nem sequer uma única casa onde se possa sentar tomar um refresco ou uma cerveja, comer uma sandes e dar com a língua com um amigo durante meia ou uma hora.  Tudo o que se dedicava a isso ou está transformado em instalações para os inúmeros bancos que vão surgindo como cogumelos – coisa que não se compreende porque aos bancos devia exigir-se que fizessem construções de raiz para o exercício das suas atividades – as pastelarias estão agora nas mãos dos libaneses, que desgraçada e arrogantemente impõem-nos seus serviços e menus às normas rígidas que trazem ou do Líbano ou de outros paraísos paranóicos de religião no médio oriente.

Somos ou não somos um Estado laico? Desde quando se poderia admitir que um moçambicano se propusesse a criar porcos no Irão? Para onde é que nos estão a empurrar? Que significado tem hoje para quem não conhece o passado recente desta cidade falar do Solar familiar, Marisqueira do Alto Maé, ou da baixa, do restaurante Vela azul, do Snacbar Pica-Pau, Alfacinha, Tico-Tico, Águia d´Ouro, Goa, Califórnia…. Ao que se diz, Portugália está na mira… Aí teremos o grande apagão.

 

* Savana, Moçambique

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