Brasil Post – ODOYÁ, YEMANJÁ!

por Arsenio Reis

 

Pedir licença e proteção, toda vez que entro no mar, foi uma das tantas lições que aprendi com o Tio Haroldo, irmão da minha mãe. Conhecido pelo bairro como Barba, nunca vi meu tio sem o rosto adornado por seus pelos. Muito magro, de short jeans e regata, ele gostava de fumar e não se metia na vida de ninguém.

Lembro de uma cena, quando eu tinha uns 3 anos de idade, em que ele chegou bêbado em casa e abaixou a cabeça ao ouvir berros da minha mãe e da minha avó. Já mais velha, ouvi dele mesmo como as duas sofreram nos anos de alcoolismo. Entre os 20 e os 35 anos de idade ele foi alcoólatra. Perdeu o emprego no banco, parou de estudar, “acabou com a própria vida”. E com a ajuda de Yemanjá e uma vacina milagrosa, conseguiu parar de beber.

No 2 de fevereiro, dia de Yemanjá, sinto forte a presença ancestral do tio Haroldo, que faleceu há 6 anos, e de tantas e tantos familiares que recorreram à rainha do mar. A vó Polu cuidou sozinha de duas crianças depois que o marido saiu de casa — quando minha mãe tinha 2 meses e o tio Haroldo 2 anos. Como tantas mulheres negras, ela trabalhava “em casa de família” durante o dia, lavava e passava roupa “pra fora” de noite. E fazia o que podia para que os filhos “não se perdessem”.

Na periferia de São Paulo, ela tinha muito medo de o filho “virar bandido”. Era muito rígida. Batia em suas costas a ponto de sangrar. “Melhor eu bater que a polícia”, era o que ela dizia. Por essas e outras o tio Haroldo se sentia pressionado, frustrado por não atender às expetativas da mãe, incapaz, injustiçado, infeliz. E bebia. Não virou bandido. Mas também não conseguiu construir um projeto de vida. Depois que parou de beber, e nem podia usar vinagre para temperar a salada, fez um curso de mecânica de automóveis e, por alguns anos, trabalhou em uma oficina.

Quando eu tinha 12 anos de idade, meu pai morreu, em outra história trágica e relativamente comum na periferia da cidade. E o tio Haroldo propôs para minha mãe que ela pagasse a ele o que gastava no meu ônibus escolar. Ele me levava para a escola, às aulas de inglês e espanhol, à biblioteca, à igreja, e ao centro da cidade, onde era possível encontrar os filmes recomendados nos livros didáticos, que eu insistia em dizer que eram obrigatórios.

E com ele eu ia à praia duas vezes por ano. Na casa da Yolanda, amiga querida da família de quem ele era muito próximo. Apesar do convívio diário intenso, era nas semanas de praia quando eu mais aprendia com ele. Comendo arroz com sardinha e tomando suco de guaraná, pedindo as benção da rainha. “Odoyá, Yemanjá!”

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Plataforma Studio

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!