O ESTADO DA DANÇA EM ANGOLA “É DESOLADOR”

por Arsenio Reis

 

Com 15 anos foi convidada a dirigir “a primeira escola de dança” da Angola independente. Hoje, Ana Clara Guerra continua a tentar construir uma tradição de dança contemporânea no país.

 

Que análise faz do estado atual da dança no país? 

ANA CLARA GUERRA (ACG)- O estado atual da dança em Angola é muito precário. Não existindo um sistema de ensino competente, não existem coletivos profissionais, verificando-se, no seu lugar, a existência de um número considerável de grupos cujo trabalho possui enormes fragilidades, justamente, por falta de conhecimentos específicos quer de ordem técnica, quer de ordem estética. Num outro plano, estão as nossas danças patrimoniais (tradicionais e populares), algumas sob ameaça de extinção e, em muitos casos, a serem adulteradas e descontextualizadas, quer pela sua utilização em atividades que nada têm a ver com a sua verdadeira essência (aparições no carnaval, em atividades políticas, em festivais e concursos não acompanhados por antropólogos ou outros profissionais ligados a esta área), quer pela forma devastadora com que “o novo” está a ganhar espaço, mesmo nos contextos sociais mais conservadores.

Para confirmar o estado desolador da dança no nosso país basta referir que ao nível da dança profissional temos apenas uma Companhia (a Companhia de Dança Contemporânea de Angola) a qual, por insólito que possa parecer, não tem merecido nenhuma atenção especial ou de qualquer apoio institucional efectivo.

 

O que fazer para arrastar ao mundo da dança mais praticantes. 

ACG- Existem, em Angola, muitos jovens com grande talento e vontade de dançar, mas isso não basta. O fundamental é, sem dúvida, instituir um sistema de ensino artístico, neste caso, da dança, que possa formar bailarinos, professores e coreógrafos, entre outros profissionais ligados a esta área, tal como se exige para outros ramos profissionais .

De contrário, estaremos a “arrastar” uma situação que não nos tem conduzido a nada, ou seja, a proliferação de grupos (e esta designação já é suficientemente esclarecedora) integrados por pessoas que até gostam de dançar (e até querem aprender) mas que não estão preparados para se apresentarem a nível profissional, já que o seu trabalho não tem consistência artística, justamente por falta de conhecimentos especializados.

 

Satisfaz-lhe a qualidade do trabalho apresentado pelos palcos angolanos? 

ACG- Depois de tudo o que referi anteriormente, uma resposta negativa é fácil de prever, infelizmente, pois há mais de 30 anos que venho lutando pela formação artística como condição primordial para o aumento da qualidade e desenvolvimento das artes no nosso país. Enquanto profissional desta área artística, sou de opinião que a dança é muito mais do que recreação, muito mais do que movimento pelo movimento. Aliás, neste contexto, quando falo em dança circunscrevo a minha atenção aos seus âmbitos patrimonial e teatral.

Quando se fala em engenharia também nos subordinamos ao pressuposto profissional, embora saibamos que as crianças brincam com ‘Legos’ e fazem construções de areia ou de outros materiais não duradouros. Daí até estes “projetos” serem exequíveis vai um grande passo: a formação académica; para que as casas não caiam, para que a sociedade acredite neles. Na dança é igual; tem de ser igual. O grande problema é que as pessoas nem sempre entendem o problema por este prisma, uma vez que existe a ideia errada de que é mais fácil dançar do que calcular um edifício. Todavia, como referi, há dançar e dançar, sendo importante distinguir os diferentes contextos da dança que se estendem desde a atividade que se pratica nas discotecas, nas festas, até ao produto que tem condições para subir ao palco, passando pela terapia, pelos rituais, pela recreação.

 

Até que ponto a falta de salas adequadas condiciona o aparecimento de mais grupos/companhias de dança em Angola? 

ACG- Não é a falta de salas que condiciona o aparecimento de mais profissionais, mas o contrário. É justamente porque não existem suficientes exigências de ordem profissional que, quem de direito, se sente pressionado a construir mais teatros em Angola (Não se admite que Luanda possua um único teatro!).

Infelizmente, a condição da maior parte dos nossos artistas obriga-os a apresentarem-se em qualquer lugar para poderem sobreviver. É humilhante! Portanto, o trabalho tem de ser em três frentes: 1 – Investir na formação para que surjam mais companhias e artistas individuais; 2 – Construir mais salas de espectáculos, apetrechá-las e, muito importante, habitá-las com pessoal técnico competente, para a divulgação da dança profissional; 3 – Formar um público conhecedor e exigente que deixe de tolerar espectáculos de má qualidade técnica e artística. Parece simples, não é? E seria simples, muito simples… Se houvesse iniciativa.

 

Que análise faz da sua carreira e o que gostaria de fazer que ainda não fez até ao momento? 

ACG- E embora tenha sido e seja uma carreira muito completa e preenchida, parece que há sempre algo que não foi feito. Mas o que eu gostaria mesmo agora era de ver tudo aquilo pelo que lutei durante tantos e tão penosos anos; gostaria de ver surgir uma nova geração de profissionais angolanos humildes e trabalhadores isentos da fúria de serem rapidamente “famosos” e “chefes”; gostaria de ver o interesse institucional pelo aumento da qualidade da produção artística; gostaria de ver o respeito pelos verdadeiros profissionais das artes em Angola e que trabalham em condições deploráveis enquanto que outros, sem a mínima qualidade, se movimentam para todo o lado em representação de Angola; gostaria de ver a construção de teatros que se enchessem de um público generoso e respeitador; gostaria que se olhasse para a dança e para o teatro sem ser como actividades de diversão. Enfim, gostaria de ver uma sociedade culta, com exigências estéticas e artísticas que permitissem o florescimento do profissionalismo e da qualidade intelectual das artes em Angola.

 

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