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Leonardo Ralha – EM BUSCA DO CHUCKIE EGG PERDIDO

Nunca trepei a uma árvore, mas recordo-me muito bem de todas as horas que passei a subir e a descer escadas, e a evitar quedas em abismos saltando no instante exato, pois tinha de recolher ovos sem ser apanhado pelas galinhas. E tudo isto sem sair da sala de estar do apartamento lisboeta onde cresci, apesar da presença de vários felinos intolerantes à passarada e de a alcatifa da minha mãe ter sobrevivido relativamente imaculada a todas estas andanças.

Era essa a magia do Chuckie Egg, um dos jogos de computador mais em voga em 1983. Em todo o lado e também naquela sala de estar, com a pequena televisão de ecrã praticamente quadrado ligada ao ZX Spectrum 48k, o pequeno computador que devia o nome aos 48 kilobytes de memória, por sua vez ligado a um gravador de cassetes, as quais precisavam de ser tocadas como se fossem de música – sujeitando-nos a uns minutos de sons comparáveis aos que poderiam resultar de uma sessão de sexo em grupo entre cachalotes – até que o jogo fosse carregado.

Chuckie Egg era aquilo a que se convencionou chamar um jogo de plataformas. Isto porque cada ecrã estava cheio de plataformas horizontais, cada vez mais altas, pelas quais se deslocava a nossa personagem, controlada com as teclas borrachosas do ZX Spectrum – Q para subir, A para descer, O para a esquerda, P para a direita, e Space para saltar – ou por um joystick em constante risco de se desconjuntar devido aos movimentos bruscos provocados pelo pânico quando as galinhas se aproximavam ou quando a nossa lentidão na recolha dos ovos fazia sair da gaiola um pato gigante.

Não foi o meu primeiro jogo no ZX Spectrum, cabendo essa honra a um “Tiro à Parede”, estreado em casa do meu avô paterno, minutos depois de irmos comprar o computador – que ele julgava decerto ser a melhor forma de me orientar para o ramo científico – a uma tabacaria que ainda hoje existe na Praça de Londres. De vez em quando entro nesse estabelecimento para registar o Euromilhões, cumprimento os empregados envelhecidos pelas três décadas que passaram desde aquela manhã, e permito-me ouvir na minha cabeça a musiquinha eletrónica que antecedia os jogos de Match Day, um simulador de futebol que estará para a última geração do Pro Evolution Soccer como o Ford T está para o último modelo da Ferrari.

Tenho, porém, razoável certeza de que Chuckie Egg foi o meu primeiro jogo de plataformas. E graças àquela cassete pirata, tão pirateada quanto todas eram naquele tempo, aprendi preciosas lições, mesmo sem nunca ter recolhido ovos enquanto era perseguido por galinhas na vida real. Aprendida à conta de muitas vidas perdidas, e regressos ao ecrã inicial, pois a modernice dos ecrãs que se movem à medida que avançamos ainda eram tão ficção científica quanto os replicantes e carros voadores do filme “Blade Runner – Perigo Iminente”, a principal lição é que tinha de conhecer bem os movimentos do inimigo para evitar problemas. Mas não menos importante era o timing mais correto para saltar de uma plataforma para outra.

Muito mais tarde, num mundo sem avôs e sem computadores com 48 kilobytes de memória, encontrei na Internet uma entrevista com o criador de Chuckie Egg. Chama-se Nigel Alderton, é britânico, e tinha apenas 16 anos quando programou o jogo, durante umas férias escolares. Modesto, como devem ser os grandes, apressou-se a dispensar o estatuto de lenda. “Para um pequeno grupo de jogadores de uma certa idade, jogos como Chuckie Egg têm uma certa magia, mas as pessoas normais nunca ouviram falar dele”, disse o atual gestor de sistemas, admitindo que nunca gostou de Manic Miner, outro jogo ‘concorrente’ que também criou clivagens ideológicas complicadas na minha rua.

Tal como muitos homens que foram adolescentes dos anos 1980, fui sentimental ao ponto de guardar um dos meus dois ZX Spectrum (não cheguei a ter a versão que tinha magníficos 128 kilobytes de memória), tal como guardei um joystick, um daqueles gravadores cujas cabeças de leitura precisavam de ser limpas regularmente com algodão embebido em álcool, e diversas caixas de cartão cheias de cassetes piratas, cada qual com o seu jogo. Suponho que se encontram num dos caixotes produzidos numa mudança de casa – não a mais recente, nem sequer a penúltima -, à espera daquele dia em que eu me atreva a voltar a ter 12 anos, mesmo que a alcatifa já tenha sido arrancada, mesmo que o gato seja outro e esteja habituado a computadores e tablets com capacidades gráficas e sonoras muito superiores. Mas também não é impossível que arqueólogos de um futuro distante ou de uma terra ainda mais distante possam encontrar o caixote, entender como o ZX Spectrum ligava à televisão e ao gravador, e tenham o deleite de recolher ovos sem serem apanhados por galinhas e patos gigantes.

As plataformas do Chuckie Egg lá continuam, esperando quem as queira experimentar e conhecer ao ponto de já nem sequer colocar a hipótese de procurar um truque escondido que assegure vidas infinitas. Pela minha parte, mesmo que nunca abra o caixote em que encerrei essa parte da existência, com fita adesiva suficiente para evitar abertura involuntária, nunca me esqueço que a vida é um jogo de plataformas. E convém sempre avançar para o ecrã seguinte, cumprindo os objetivos daquele em que estamos, pois ficar parado é meio caminho andado para levar umas bicadas de galinha ainda mais perigosas no estado de metáfora do que no sentido literal.

 

* 作假者 Escritor

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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